São Paulo, quinta-feira, 27 de setembro de 2007

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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Bem-Vindo a São Paulo

Filme coloca a cidade num papel para o qual nem sempre ela é convidada: o de síntese do Brasil

EM "RIO 40 GRAUS", canção gravada há 10 anos por Fernanda Abreu, Chico Science e Nação Zumbi, diz a letra que o Rio de Janeiro é a capital "do melhor e do pior do Brasil". Curiosamente, a mesma fórmula aparece logo no início de "Bem-Vindo a São Paulo". O filme é uma costura de visões da metrópole com imagens realizadas por diversos cineastas, na maior parte estrangeiros, a convite de Leon Cakoff, o herói da Mostra de Cinema de SP -evento que já se tornou tradicional na agenda cultural do país.
O filme coloca a cidade num papel para o qual nem sempre ela é convidada, e que talvez ainda a deixe um pouco desconfortável: o de síntese do Brasil. Ou melhor, de síntese daquilo que o Brasil "tem de melhor e de pior", como diz o texto em off, narrado por Caetano Veloso, ecoando a canção.
Já se vão 30 anos desde que Cakoff realizou a primeira Mostra, ainda na esfera do Masp, de Pietro Maria Bardi, com quem acabou se desentendendo ferozmente. Nessas três décadas, muita coisa aconteceu com São Paulo -e com a imagem de São Paulo.
A cidade, da ordem do trabalho e do empreendimento, sempre foi representada no imaginário nacional por traços pouco distintivos do que seria a genuína brasilidade. Sua feição urbana, dura e desprovida de encantos naturais, sua recatada e agasalhada distância em relação ao mar, o pendor pelos interiores, a paisagem humana coalhada de imigrantes estranhos aos códigos sinuosos e hedonistas do nosso cosmopolitismo tropical (a acentuar o jeito "provinciano" de sua gente), tudo isso faz parte da construção do estereótipo de São Paulo como avesso do Brasil. Nada disso é inverídico, apenas, com o passar do tempo, vai se transfigurando de falta em acréscimo. De certa forma, São Paulo teve um "up grade" em seu papel na configuração simbólica do Brasil -o que a alguns, compreensivelmente, pode até parecer uma ofensa.
Há muitas razões para isso. Uma delas, possivelmente, é a mudança de perfil econômico, com o maior desenvolvimento dos serviços e atividades criativas no que antes era uma pesada locomotiva industrial. A São Paulo que se projeta como uma face internacionalmente reconhecível -e estranhamente fascinante- do Brasil é, certamente, a cidade das contradições agigantadas do Terceiro Mundo moderno, com seus mendigos no asfalto e helicópteros nos céus, mas é também a cidade do design, da arquitetura, da moda, da publicidade, da editoração, da tecnologia, dos restaurantes e do acúmulo de gente interessante antes, durante e depois de suas noites infindáveis.
O filme de Cakoff tocou-me mais do que tudo pela reafirmação de meus mitos prediletos acerca do Brasil -aqueles que derivam da "democracia racial", da idéia de uma sociedade propensa à miscigenação e à convivência pacífica na diversidade.
É esse o aspecto que "Bem-Vindo a São Paulo" ressalta como o melhor do Brasil. E São Paulo é ainda um laboratório vivo desse processo. É através do espelho dessa cidade que filhos de imigrantes de variadas procedências -e Cakoff é um deles- logo encontram seu rosto brasileiro.


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