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Comentário/"Tropa de Elite"
Não dá para aplaudir nem sob tortura
Filme de Padilha imita cinemão americano com roteiro esquemático e moralismo mistificador; para piorar, banaliza a tortura
PLÍNIO FRAGA
DA SUCURSAL DO RIO
"Tropa de Elite" é um
filme de Hollywood
falado em português. A obra de José Padilha é
hollywoodiana no que a expressão tem de excelência técnica e
conservadorismo social e estético. Ritmo narrativo ágil, fotografia caprichada, sonorização
impecável, atores bem dirigidos e custo de produção na casa
da dezena de milhões de reais
são características do filme
-não por acaso, apadrinhado
pelo produtor Harvey Weinstein (ex-Miramax).
Mas "Tropa de Elite" herda
do cinemão americano o roteiro esquemático, o moralismo
mistificador, o cinismo utilitário, a hipocrisia social, o pensamento monolítico. Banaliza e
glamouriza a tortura. Acha justificável os fins da assepsia social e seus meios aéticos. É um
filme desumano e autoritário.
Exibido no Festival do Rio e
em cartaz em Jundiaí (a 60 km
de São Paulo), no cinema Moviecom Maxi 3, até hoje, em
sessão única às 16h30 (era uma
tentativa de concorrer ao Oscar
em 2008), o filme é narrado pelo capitão Nascimento (Wagner Moura), que quer deixar
o Bope (Batalhão de Opera-
ções Policiais Especiais) da PM
do Rio por causa do filho que
nasce.
Às vésperas da visita do papa
ao Brasil -que se hospedará na
casa do cardeal do Rio, cercada
por favelas-, Nascimento busca um sucessor entre dois aspirantes a oficiais (Caio Junqueira e André Ramiro) que pretendem se integrar à tropa de elite
da polícia do Rio. O primeiro é
um policial "honesto" que se
aproveita de esquemas corruptos para equipar melhor a PM;
o segundo, um negro de origem
pobre que estuda direito entre
bem-nascidos.
É uma história de ficção baseada em relatos reais, adaptada do livro "Elite da Tropa", escrito por um sociólogo (Luiz
Eduardo Soares) e por dois capitães da PM (André Batista e
Rodrigo Pimentel, este um dos
roteiristas do filme).
Na conta do papa
Em "Tropa de Elite", a tortura é repetida à exaustão banalizadora. Um traficante, com um
saco plástico na cabeça, é asfixiado por policiais para que
conte onde está o corpo de um
"vapor" (funcionário do tráfico) reclamado pela mãe. Morre
sem que a informação seja obtida. "Coloca na conta do papa",
diz Nascimento, o herói cínico
do filme.
A tropa de elite tortura um
jovem porque tem um tênis caro, indício para o Bope mais do
que suficiente de que estava envolvido com o "movimento" da
venda de drogas.
Tortura também a mulher do
chefe do tráfico de um morro
para que revele o paradeiro do
marido. Quando o traficante,
que havia matado um policial, é
encontrado, um desfecho óbvio: imobilizado, é assassinado
pelo Bope.
Capitalismo reinventado
Uma das descobertas do filme é quase a reinvenção do capitalismo: o tráfico de drogas
existe porque há consumo, um
truísmo que vale para mercados tão distintos como o do jiló
e o do iPhone.
O filme mostra uma incursão
do Bope a um morro, na qual os
policiais surpreendem um grupo de traficantes no alto da favela. Atiram primeiro, perguntam depois.
"Quem matou esse cara
aqui?", questiona o capitão do
Bope a um consumidor que representa o estereótipo do carioca da zona sul, surpreendido
entre um grupo de homens armados do tráfico.
O consumidor titubeia e, depois de alguns tapas, responde:
"Foi um de vocês". "Vocês é o
caralho. Quem matou esse cara
aqui foi você, seu veado. É você
que financia essa merda aqui.
Seu maconheiro, seu merda! A
gente vem aqui para desfazer a
merda que você faz", afirma o
capitão.
"Tropa de Elite" mostra o sistema policial corrompido, no
qual comandantes da PM recebem propina e reforçam caixas
de campanhas eleitorais para
que políticos ajudem na nomeação de mais comandantes
corruptos.
Mas o Bope é retratado como
uma ilha de excelência técnica
e moral, a realizar operações
policiais -sempre com vestimentas de luto antecipado-
nas quais não há presos: "Homem de preto, qual é a sua missão? É invadir favela e deixar
corpo no chão", canta a tropa.
Condescendência
O diretor José Padilha -o
mesmo do documentário "Ônibus 174", que mostra como o
seqüestrador do veículo no Rio
foi morto em 2000 (por homens do Bope dentro do camburão, após ter sido imobilizado)- pode alegar que apenas
retrata a realidade. Em muitas
partes do filme, não está longe
dela, mas esse é um argumento
débil naquilo que se refere à
condescendência e ao estímulo
à tortura.
Uma obra artística é resultado de escolhas -tanto estéticas
quanto políticas. As que Padilha fez em "Tropa de Elite" colocam seu filme a serviço da legitimação da tortura como solução policial. Padilha, como
diretor, não é um narrador inocente. Seu viés é seu discurso.
Não precisava ser imparcial,
mas, ao glorificar a limpeza social do Bope, está próximo de
ser seu cúmplice.
Na abertura do filme, o cineasta incluiu uma citação do
psicólogo social norte-americano Stanley Milgram, segundo
a qual o comportamento do indivíduo é determinado pelas
circunstâncias. Milgram, morto em 1984, tem entre seus estudos mais conhecidos o que
trata da obediência e da responsabilidade individual.
O psicólogo recrutou pessoas
como cobaias para uma experiência: chamadas na pesquisa
de "professores", deveriam administrar choques elétricos de
intensidade crescente em "alunos" que cometessem erros.
A pesquisa os isentava de responsabilidade -transferida aos
superiores- e não informou
aos "professores" que os "alunos" vítimas de seus choques,
como se fossem ratos, eram, na
realidade, atores que simulavam receber cargas elétricas.
Resultado: 60% dos professores obedeceram ordens para
punir os "alunos" e intensificar
os choques.
Em alguns momentos, como
nas experiências de Stanley
Milgram ou em certas operações do Bope, até os ratos podem ser vítimas de causas aparentemente nobres.
Conivente, "Tropa de Elite"
não merece aplausos -nem sob
tortura.
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