São Paulo, quinta-feira, 27 de setembro de 2007

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Comentário/"Tropa de Elite"

Não dá para aplaudir nem sob tortura

Filme de Padilha imita cinemão americano com roteiro esquemático e moralismo mistificador; para piorar, banaliza a tortura

PLÍNIO FRAGA
DA SUCURSAL DO RIO

"Tropa de Elite" é um filme de Hollywood falado em português. A obra de José Padilha é hollywoodiana no que a expressão tem de excelência técnica e conservadorismo social e estético. Ritmo narrativo ágil, fotografia caprichada, sonorização impecável, atores bem dirigidos e custo de produção na casa da dezena de milhões de reais são características do filme -não por acaso, apadrinhado pelo produtor Harvey Weinstein (ex-Miramax).
Mas "Tropa de Elite" herda do cinemão americano o roteiro esquemático, o moralismo mistificador, o cinismo utilitário, a hipocrisia social, o pensamento monolítico. Banaliza e glamouriza a tortura. Acha justificável os fins da assepsia social e seus meios aéticos. É um filme desumano e autoritário.
Exibido no Festival do Rio e em cartaz em Jundiaí (a 60 km de São Paulo), no cinema Moviecom Maxi 3, até hoje, em sessão única às 16h30 (era uma tentativa de concorrer ao Oscar em 2008), o filme é narrado pelo capitão Nascimento (Wagner Moura), que quer deixar o Bope (Batalhão de Opera- ções Policiais Especiais) da PM do Rio por causa do filho que nasce.
Às vésperas da visita do papa ao Brasil -que se hospedará na casa do cardeal do Rio, cercada por favelas-, Nascimento busca um sucessor entre dois aspirantes a oficiais (Caio Junqueira e André Ramiro) que pretendem se integrar à tropa de elite da polícia do Rio. O primeiro é um policial "honesto" que se aproveita de esquemas corruptos para equipar melhor a PM; o segundo, um negro de origem pobre que estuda direito entre bem-nascidos.
É uma história de ficção baseada em relatos reais, adaptada do livro "Elite da Tropa", escrito por um sociólogo (Luiz Eduardo Soares) e por dois capitães da PM (André Batista e Rodrigo Pimentel, este um dos roteiristas do filme).

Na conta do papa
Em "Tropa de Elite", a tortura é repetida à exaustão banalizadora. Um traficante, com um saco plástico na cabeça, é asfixiado por policiais para que conte onde está o corpo de um "vapor" (funcionário do tráfico) reclamado pela mãe. Morre sem que a informação seja obtida. "Coloca na conta do papa", diz Nascimento, o herói cínico do filme.
A tropa de elite tortura um jovem porque tem um tênis caro, indício para o Bope mais do que suficiente de que estava envolvido com o "movimento" da venda de drogas.
Tortura também a mulher do chefe do tráfico de um morro para que revele o paradeiro do marido. Quando o traficante, que havia matado um policial, é encontrado, um desfecho óbvio: imobilizado, é assassinado pelo Bope.

Capitalismo reinventado
Uma das descobertas do filme é quase a reinvenção do capitalismo: o tráfico de drogas existe porque há consumo, um truísmo que vale para mercados tão distintos como o do jiló e o do iPhone.
O filme mostra uma incursão do Bope a um morro, na qual os policiais surpreendem um grupo de traficantes no alto da favela. Atiram primeiro, perguntam depois.
"Quem matou esse cara aqui?", questiona o capitão do Bope a um consumidor que representa o estereótipo do carioca da zona sul, surpreendido entre um grupo de homens armados do tráfico.
O consumidor titubeia e, depois de alguns tapas, responde: "Foi um de vocês". "Vocês é o caralho. Quem matou esse cara aqui foi você, seu veado. É você que financia essa merda aqui. Seu maconheiro, seu merda! A gente vem aqui para desfazer a merda que você faz", afirma o capitão.
"Tropa de Elite" mostra o sistema policial corrompido, no qual comandantes da PM recebem propina e reforçam caixas de campanhas eleitorais para que políticos ajudem na nomeação de mais comandantes corruptos.
Mas o Bope é retratado como uma ilha de excelência técnica e moral, a realizar operações policiais -sempre com vestimentas de luto antecipado- nas quais não há presos: "Homem de preto, qual é a sua missão? É invadir favela e deixar corpo no chão", canta a tropa.

Condescendência
O diretor José Padilha -o mesmo do documentário "Ônibus 174", que mostra como o seqüestrador do veículo no Rio foi morto em 2000 (por homens do Bope dentro do camburão, após ter sido imobilizado)- pode alegar que apenas retrata a realidade. Em muitas partes do filme, não está longe dela, mas esse é um argumento débil naquilo que se refere à condescendência e ao estímulo à tortura.
Uma obra artística é resultado de escolhas -tanto estéticas quanto políticas. As que Padilha fez em "Tropa de Elite" colocam seu filme a serviço da legitimação da tortura como solução policial. Padilha, como diretor, não é um narrador inocente. Seu viés é seu discurso. Não precisava ser imparcial, mas, ao glorificar a limpeza social do Bope, está próximo de ser seu cúmplice.
Na abertura do filme, o cineasta incluiu uma citação do psicólogo social norte-americano Stanley Milgram, segundo a qual o comportamento do indivíduo é determinado pelas circunstâncias. Milgram, morto em 1984, tem entre seus estudos mais conhecidos o que trata da obediência e da responsabilidade individual.
O psicólogo recrutou pessoas como cobaias para uma experiência: chamadas na pesquisa de "professores", deveriam administrar choques elétricos de intensidade crescente em "alunos" que cometessem erros.
A pesquisa os isentava de responsabilidade -transferida aos superiores- e não informou aos "professores" que os "alunos" vítimas de seus choques, como se fossem ratos, eram, na realidade, atores que simulavam receber cargas elétricas. Resultado: 60% dos professores obedeceram ordens para punir os "alunos" e intensificar os choques.
Em alguns momentos, como nas experiências de Stanley Milgram ou em certas operações do Bope, até os ratos podem ser vítimas de causas aparentemente nobres.
Conivente, "Tropa de Elite" não merece aplausos -nem sob tortura.


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