São Paulo, sexta-feira, 27 de outubro de 2000

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GASTRONOMIA
Não há o que acabe com o sabor da França

NINA HORTA
EM PARIS

Aqui estamos nós, ainda em Paris, hospedados num "studio", numa ruazinha calma do 7ème. Rue Monsieur. Rue Monsieur e mais nada, como deve existir uma rua Madame e uma Démoiselle. Mas esta é masculina mesmo, militar até, sem grandes hotéis barulhentos. A grande onda de turismo chega até a Torre Eiffel, pára, olha, sobe e não dá um passo à frente, possibilitando a paz bucólica de folhas douradas de outono frente ao Dôme dourado dos Invalides.
Viagens são formadas por um passeio aqui, outro ali, passeios entremeados de restaurantes, brasseries e bistrôs, leituras de livros ("L'Excéption Culinaire Française", Alexandre Lazareff, ed. Albin Michel, e "Aventures de la Cuisine Française", Bénedict Beaugé, ed. Nil), conversas, muito jornal e revista. Pela compra de ingredientes excepcionais para a comida de todo dia (o mais divertido na viagem e o mais instrutivo. É bom brincar de casinha na terra dos outros); por um sincero alarme pela péssima comida oferecida a nós turistas em quase todos os lugares. Pelo respeito tanto pelo criativo e disciplinado chef formado na escola francesa quanto pelos autodidatas influenciados pelo seus "terroirs".
Toda essa mistura de impressões rápidas e simultâneas do que anda pelos ares gastronômicos é fecundada por uma discussão que ameaça se tornar crônica.
"Estará a cozinha francesa se afastando de suas raízes? A globalização vai lhe tirar a identidade? Como salvar o que restou?"
É um vasto assunto. Num primeiro momento, a tal de globalização mostra a cara façanhuda nos milhares de turistas entrando nos milhares de restaurantes e parece que tudo está perdido. É de se acreditar que seja impossível cozinhar com um mínimo de decência para tanta gente ao mesmo tempo.
E ainda há os concorrentes da cozinha francesa. Os espanhóis, com sua comida saborosa, novos cozinheiros inovadores, e os italianos, que ainda por cima conseguiram convencer o mundo de que o macarrão é ótimo para emagrecer. E o MacDo, então, o perigo mais notável, a estandardização, a organização, o dinheiro, a acomodação do paladar, suspiram os franceses. ( Nem todos.)
"E esta novidade de fusion food, essa invenção dos infernos?", interrogam-se alguns críticos. Antigamente, quando se queria comer comida japonesa, ia-se ao restaurante japonês, comida tailandesa, ao tailandês. Agora vem tudo no mesmo prato!!!!
E os novos costumes? Ir a um restaurante de um grande chef e pagar muito dava status, hoje é "gaspillage", desperdício. Era de bom-tom casar a filha num banquete feito pelo mesmo "traîteur" da família há cem anos e agora também há que se cuidar para não ser chamado de "nouveau".
E os chefs? E os famosos chefs franceses? É possível fazer comida boa e barata com ingredientes caros?
E o treinamento do cozinheiro francês, com a tradição de mestre-aluno, o culto da excelência, vai se tornar impossível se os jovens talentos desertaram as grandes casas para ir fazer comida de avó por conta própria num pequeno bistrô. Quem vai ensinar à nova geração as "pommes soufflées" perfeitas, a omelete "baveuse", as massas folhadas a técnica, a disciplina férrea e todo o resto?
Não sei as respostas, e cada um tem a sua. Minha esperança está na cara do francês que come, o seu prazer à mesa, o olhar entendido que lança para a ostra. (Esta opinião vai contra outra, que acha a maioria do povo francês completamente ligado a tradições de uma época de escassez e incapaz de absorver novidades culinárias. Ver a quantidade de miúdos e o aproveitamento da comida em sopas e ensopados nos bistrôs simples e o menu repetido e sem inspiração.)
Crises levam a soluções. Depois de muita briga, já se viu que há um nicho razoável para chefs talentosos, patrocinados ou não. Os grandes restaurantes de hotéis, se bem administrados, continuarão a cevar esses talentos.
Existe hora e lugar para a fast food, americana ou à moda francesa. É só equilibrar com a boa comida feita em casa. E, se não se faz comida em casa, se os fast food franceses e os pegas-turistas são piores que o americano, não há do que reclamar.
Quanto a novas influências, sem problema. Não é a comida francesa um rio de influências, não é em Paris que se faz o melhor cuscuz marroquino do mundo? Que a cozinha seja sempre nova e que se renove a todo instante.
Salvando tudo a excelência do produto, que se torna cada dia melhor e mais acessível. O francês está interessado na galinha e no milho que ela come. Quase todo ingrediente tem marcado na casca ou na pele sua orgulhosa origem. Com esse tipo de ingrediente, com uma dona e dono-de-casa conscientes, com a ajuda da escola, com um turista mais exigente e menos distraído, todos juntos contra o cotidiano de uma comida medíocre, não há o que acabe com o sabor da França.

E-mail - ninahort@uol.com.br


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