São Paulo, sábado, 27 de outubro de 2001

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25ª MOSTRA BR DE CINEMA DE SÃO PAULO

RETROSPECTIVA

Cineasta italiano, diretor de "A Moça com a Valise" e "Dois Destinos", é o homenageado deste ano

Valerio Zurlini exibe a delicadeza de sua obra

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Não há cineasta mais delicado do que Valerio Zurlini. Pode-se falar na delicadeza dos sentimentos que seus personagens carregam. Mas essa não é, com certeza, a única.
Zurlini coloca sua câmera quase como se tivesse pudor de observar a errância desesperada de seus personagens.
Jacques Perrin é o seu ator-chave. Ele está em "A Moça com a Valise", "Dois Destinos" e "O Deserto dos Tártaros". É um ator que chama a atenção pela doçura, pela beleza triste. Não resta dúvida de que a ingratidão e as incongruências do mundo se abaterão sobre ele.
Assim como as cores são distribuídas de maneira discreta -em seus filmes coloridos-, o sofrimento se instala entre os personagens da mesma forma, mas de maneira definitiva.
A condição própria do mundo é a assimetria e a incompreensibilidade. Não existe justiça à vista -provavelmente não existe justiça alguma-, portanto não existe remissão.
Assim, os irmãos de "Dois Destinos" estão separados pela vida quando um deles, o mais frágil, morre. Não há como recuperar o tempo perdido.
Da mesma forma, o professor de "A Primeira Noite de Tranquilidade" (Alain Delon) sabe que não existe conciliação possível para um amor que termina (seu casamento), se o novo amor não é senão sintoma de sua própria inquietude diante das coisas.
"O Deserto dos Tártaros", adaptação do romance de Dino Buzzati talvez superior ao próprio romance, é possivelmente o resumo mais acabado (e o menos sentimental) de suas idéias: o tempo, a inquietação (que aqui se traduz por tédio), a expectativa é o que nos destrói.
A vida é sempre maior ou menor do que nós. Ou bem a fantasia nos conduz, e acabamos sendo confrontados a uma realidade moral ou mesmo física que a destrói, ou bem a ausência de fantasia nos avilta.
Uma questão que se impõe, portanto, é: qual o lugar de Zurlini no grande cinema italiano do pós-guerra. Ele não foi um inovador, como Rossellini ou Antonioni, não foi incisivo como Visconti ou Pasolini, não foi bombástico e popular como Fellini. Esteve próximo do melodrama, mas, ao contrário de um De Sica, driblou-o seguidamente.
Zurlini é um intimista, por certo, mas esse é o tipo de qualificação que -Japão à parte- soa quase como desabonadora.
Não é preciso diminuir a contribuição dos cineastas maiores (ou mais famosos) para incluir Zurlini entre eles.
Seus filmes são como monolitos que, quase 20 anos depois de sua morte, permanecem intocados, legíveis (isto é: ainda a ler), carregados de um mistério que não se desprega de seus personagens, que não se deixa superar.
Essa retrospectiva promovida pela 25ª Mostra introduzirá muitos cinéfilos à sua obra invulgar. Ajudará, ainda, outros a aproximarem-se dela de maneira mais completa. E trará a certeza de que Valerio Zurlini está longe de ser um cineasta menor com momentos de gênio.
É um autor cuja doçura triste, delicadeza de traço, constância têm muito a nos dizer. Sobre a vida, sem dúvida, mas também sobre o cinema.
Se cada vez mais nos deixamos influenciar pelo brilhareco, Zurlini está aí a nos lembrar que o cinema pode se passar de impactos fáceis. Ou antes, que tende a ser tão mais duradouro (portanto, importante) quanto menos se deixe contaminar pelos apelos não raro caóticos do momento.


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