São Paulo, sábado, 27 de outubro de 2001

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WALTER SALLES

Salaam Cinema

A notícia apareceu no jornal inglês "Independent". Parecia uma farsa, mas não era. Roteiristas e diretores de cinema de Hollywood vêm sendo chamados pelo Exército norte-americano para imaginar quais poderão ser os próximos alvos de ataques terroristas.
Entre os primeiros convocados, incluíram-se o roteirista de "Duro de Matar", Steven de Souza, e o diretor de "Desaparecido em Ação", Joseph Zito. Talvez por desinformação, também foi chamado o diretor da comédia "Grease -0Nos Tempos da Brilhantina". Pelo menos desta Groucho Marx escapou.
O serviço secreto norte-americano argumenta que esse grupo tem a capacidade de antecipar tramas, projetar cenários e entender as motivações de personagens vivendo em situações-limite.
Não sei se você viu "Desaparecido em Ação", mas como diria Nelson Rodrigues, aqueles personagens tinham a profundidade de um pires. Se depender dessa tropa, Osama poderá dormir tranquilo.
Talvez seja possível olhar para a informação publicada pelo "Independent" de outra forma: é a prova de que, hoje, a fronteira entre realidade e ficção se torna cada vez mais porosa. Não é preciso ir muito longe para perceber isso. No Brasil, os casos do ônibus 174 e do duplo sequestro da família Sílvio Santos são a expressão desse estado de coisas. Por outro lado, já virou lugar-comum afirmar que as imagens do 11 de setembro pareciam as de um filme de ação hollywoodiano. E eram. Como dizia Adorno, "desejam-se as catástrofes que se imaginam".
Aceitando-se essa tese, pode-se também chegar à conclusão inversa: desejamos a pluralidade que imaginamos. É o que nos traz o cinema que vai na contramão do filme-catástrofe: o cinema como instrumento de conhecimento do mundo. Essa forma de realização de imagens, quase sempre associada ao cinema independente, está amplamente representada na 25ª Mostra de Cinema de São Paulo, organizada por Leon Cakoff e Renata de Almeida.
Sintomaticamente, a mostra deste ano traz vários filmes que projetam o cinema no centro dos debates que vivenciamos. É extraordinário ver que "O Caminho para Kandahar", de Moshen Makhmalbaf, pode nos ajudar a entender as características de um país que está no coração do conflito. Até Bush percebeu isso e pediu para ver o filme.
"Kandahar" não está só. Há na Mostra documentários como "Promessas", de Justine Shapiro, B.Z. Goldberg e Carlos Bolado, que mergulham na gênese do confronto entre israelenses e palestinos. Mas também é possível olhar para os filmes que vão além do caos imediato em que estamos vivendo e que nem por isso deixam de nos oferecer um reflexo do nosso tempo. É o caso de um filme chinês extraordinário, "Plataforma", segundo longa do talentoso diretor Jia Zhang-ke.
"Plataforma" é um filme de geração. Um filme político, no melhor sentido da palavra. Mostra um grupo de amigos durante mais de uma década, de 1979 aos anos 90, numa pequena cidade do interior do país. São anos emblemáticos, em que a China abandona a liturgia maoísta para se abrir ao mercado.
É um processo doloroso. No final dos anos 70, os amigos trabalham em um grupo de teatro que encena peças oficiais. Os anos 80 trazem consigo a invasão da música pop de Taiwan e de Hong-Kong, os cabelos longos, a liberação sexual... e o fim dos subsídios do Estado. Diante dos mecanismos selvagens da nova economia, o grupo de teatro vai implodindo aos poucos. As atrizes se globalizam: transformam-se em go-go girls. Privatizado, o grupo acaba melancolicamente à margem das cidades por onde passa.
Jia Zhang-ke filma esse processo de corrosão de forma bressoniana. A câmera raramente se move. Os personagens estão vivos dentro do quadro e nos surpreendem constantemente. Uma intensa melancolia permeia o filme como um todo, impregnando cada gesto, cada tragada de cigarro. Cada dança é vivida como se fosse a última. É como se Zhang-ke dissesse: ainda nos amamos tanto, malgrado as perdas que ainda nem sabemos como contabilizar.
Perda de referências culturais, avanço da globalização, necessidade de resistência. "Plataforma" não fala apenas da China contemporânea. Fala, indiretamente, de todos nós. Tão distantes e, no entanto, tão próximos, diria Wim Wenders.
É esse cinema diverso e plural, grávido do desejo de refletir e de re-imaginar o mundo, que aniversaria com a Mostra de São Paulo. Aniversário é feito para ser comemorado: longa vida à Mostra. E Salaam Cinema - Salve o cinema.


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