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WALTER SALLES
Salaam Cinema
A notícia apareceu no jornal inglês "Independent".
Parecia uma farsa, mas não era.
Roteiristas e diretores de cinema
de Hollywood vêm sendo chamados pelo Exército norte-americano para imaginar quais poderão
ser os próximos alvos de ataques
terroristas.
Entre os primeiros convocados,
incluíram-se o roteirista de "Duro
de Matar", Steven de Souza, e o
diretor de "Desaparecido em
Ação", Joseph Zito. Talvez por desinformação, também foi chamado o diretor da comédia "Grease
-0Nos Tempos da Brilhantina".
Pelo menos desta Groucho Marx
escapou.
O serviço secreto norte-americano argumenta que esse grupo
tem a capacidade de antecipar
tramas, projetar cenários e entender as motivações de personagens
vivendo em situações-limite.
Não sei se você viu "Desaparecido em Ação", mas como diria
Nelson Rodrigues, aqueles personagens tinham a profundidade
de um pires. Se depender dessa
tropa, Osama poderá dormir
tranquilo.
Talvez seja possível olhar para a
informação publicada pelo "Independent" de outra forma: é a
prova de que, hoje, a fronteira entre realidade e ficção se torna cada vez mais porosa. Não é preciso
ir muito longe para perceber isso.
No Brasil, os casos do ônibus 174 e
do duplo sequestro da família Sílvio Santos são a expressão desse
estado de coisas. Por outro lado,
já virou lugar-comum afirmar
que as imagens do 11 de setembro
pareciam as de um filme de ação
hollywoodiano. E eram. Como dizia Adorno, "desejam-se as catástrofes que se imaginam".
Aceitando-se essa tese, pode-se
também chegar à conclusão inversa: desejamos a pluralidade
que imaginamos. É o que nos traz
o cinema que vai na contramão
do filme-catástrofe: o cinema como instrumento de conhecimento
do mundo. Essa forma de realização de imagens, quase sempre associada ao cinema independente,
está amplamente representada
na 25ª Mostra de Cinema de São
Paulo, organizada por Leon Cakoff e Renata de Almeida.
Sintomaticamente, a mostra
deste ano traz vários filmes que
projetam o cinema no centro dos
debates que vivenciamos. É extraordinário ver que "O Caminho
para Kandahar", de Moshen
Makhmalbaf, pode nos ajudar a
entender as características de um
país que está no coração do conflito. Até Bush percebeu isso e pediu para ver o filme.
"Kandahar" não está só. Há na
Mostra documentários como
"Promessas", de Justine Shapiro,
B.Z. Goldberg e Carlos Bolado,
que mergulham na gênese do
confronto entre israelenses e palestinos. Mas também é possível
olhar para os filmes que vão além
do caos imediato em que estamos
vivendo e que nem por isso deixam de nos oferecer um reflexo do
nosso tempo. É o caso de um filme
chinês extraordinário, "Plataforma", segundo longa do talentoso
diretor Jia Zhang-ke.
"Plataforma" é um filme de geração. Um filme político, no melhor sentido da palavra. Mostra
um grupo de amigos durante
mais de uma década, de 1979 aos
anos 90, numa pequena cidade
do interior do país. São anos emblemáticos, em que a China
abandona a liturgia maoísta para se abrir ao mercado.
É um processo doloroso. No final dos anos 70, os amigos trabalham em um grupo de teatro que
encena peças oficiais. Os anos 80
trazem consigo a invasão da música pop de Taiwan e de Hong-Kong, os cabelos longos, a liberação sexual... e o fim dos subsídios
do Estado. Diante dos mecanismos selvagens da nova economia,
o grupo de teatro vai implodindo
aos poucos. As atrizes se globalizam: transformam-se em go-go
girls. Privatizado, o grupo acaba
melancolicamente à margem das
cidades por onde passa.
Jia Zhang-ke filma esse processo
de corrosão de forma bressoniana. A câmera raramente se move.
Os personagens estão vivos dentro
do quadro e nos surpreendem
constantemente. Uma intensa
melancolia permeia o filme como
um todo, impregnando cada gesto, cada tragada de cigarro. Cada
dança é vivida como se fosse a última. É como se Zhang-ke dissesse: ainda nos amamos tanto, malgrado as perdas que ainda nem
sabemos como contabilizar.
Perda de referências culturais,
avanço da globalização, necessidade de resistência. "Plataforma"
não fala apenas da China contemporânea. Fala, indiretamente, de todos nós. Tão distantes e,
no entanto, tão próximos, diria
Wim Wenders.
É esse cinema diverso e plural,
grávido do desejo de refletir e de
re-imaginar o mundo, que aniversaria com a Mostra de São
Paulo. Aniversário é feito para ser
comemorado: longa vida à Mostra. E Salaam Cinema - Salve o cinema.
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