São Paulo, sábado, 27 de outubro de 2001

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LIVROS / LANÇAMENTOS

"AVENTURAS NO MARXISMO"

Obra reúne 13 textos de Marshall Berman

Coletânea é produto da retração do marxismo

MARIO SERGIO CONTI
DA SUCURSAL DO RIO

Há 15 anos, quando foi lançado no Brasil o primeiro livro de Marshall Berman, "Tudo que É Sólido Desmancha no Ar", o general Golbery do Couto e Silva estava afastado da política. Deixara o ministério de João Figueiredo porque o ditador acobertou os terroristas do Exército que fizeram o atentado do Riocentro
Golbery apoiara Paulo Maluf contra Tancredo Neves. Derrotado, acompanhava à distância a barafunda do governo Sarney e seu Plano Cruzado. Tinha tempo de sobra para atender o telefonema do repórter que queria sua opinião sobre o livro de Berman.
O general foi talvez o primeiro brasileiro a ler "Tudo que É Sólido Desmancha no Ar". Lera uma resenha no "New York Times Review of Books" na semana em que foi lançado nos Estados Unidos, em 1982, e o importou.
"É um livro excelente, lembra um pouco "Rumo à Estação Fin- lândia", do Edmund Wilson", disse Golbery, um reacionário que estudara Marx e raciocinava dialeticamente. Berman, que não tinha noção de quem era o general, ficou lisonjeado com a opinião.
Os 13 ensaios, artigos e resenhas reunidos por Marshall Berman em "Aventuras no Marxismo" comprovam que Golbery continua certo. Afora Marx, Edmund Wilson é o autor mais citado no livro. Como em "Rumo à Estação Finlândia", a preocupação de Berman é rastrear o radicalismo tendo Marx como paradigma. Sua prosa, bem informada e emocionada, lembra a de Wilson.

Autotransformação
Cessam aí as semelhanças. O livro de Wilson historia o pensamento libertário desde as concepções de Jules Michelet sobre a Revolução Francesa até o desembarque de Lênin na estação Finlândia, em Petrogrado, em abril de 1917, para liderar a revolução bolchevique.
Escrito durante a Segunda Guerra Mundial, "Rumo à Estação Finlândia" captava o marxismo no auge. Mostrava o pensamento socialista se concretizando em prática, mudando a vida de centenas de milhões de pessoas.
A coletânea de Berman, além de não pretender contar uma história, é produto da retração do marxismo. Como em "Tudo que É Sólido Desmancha no Ar", a pedra de toque do livro é a aproximação da modernidade (em 1845, Baudelaire usou pela primeira vez a expressão "arte moderna") ao marxismo (consubstanciado três anos depois pelo próprio Marx no "Manifesto do Partido Comunista").
Da aproximação, resulta um Marx mais modernista que comunista. Para Berman, a modernidade é a situação histórica em que o indivíduo pode se aventurar, autotransformando-se e transformando a sociedade, ao mesmo tempo em que corre o risco de ser engolfado pela destruição inerente ao capitalismo.
Berman encontra a aventura modernista no Marx dos "Manuscritos Econômico-Filosóficos". Nele, o jovem pensador proclama o direito do indivíduo a buscar "o livre desenvolvimento de sua energia física e mental" e defende que o comunismo é "uma solução genuína para o conflito entre homem e natureza e entre homem e homem".
Berman flagra a destruição capitalista na sociedade burguesa descrita no "Manifesto": "Todas as relações fixas e rapidamente solidificadas, com sua coleção de idéias e opiniões veneráveis, são varridas do mapa; todas as relações recém-formadas tornam-se obsoletas antes de terem tempo de se calcificar".
Emparedado entre a utopia dos "Manuscritos" e o elogio à destruição do "Manifesto", Berman não dá o passo que o próprio Marx deu: o de descer aos infernos da economia para de lá sair com uma teoria que norteasse uma ação política. Sistematicamente, ele tira a palavra "Partido" do título do "Manifesto". O seu Marx de Berman é um escritor e filósofo, e não um político com a ambição de mudar o mundo.
No capítulo "As Pessoas em "O Capital'", por exemplo, ele estuda o poder das metáforas, a força dramática, o uso literário que Marx faz da voz de operários e inspetores de fábricas inglesas. Conclui o óbvio, que Marx foi um dos maiores escritores do século 19, e passa ao largo da questão central de "O Capital".
A saber: a do prognóstico histórico de que o proletariado se erigiria em classe dominante e emancipadora da humanidade, da ruína inevitável do capitalismo.

Derrota na derrota
Com isso, "Aventuras" faz do marxismo um atraente objeto de estudo e, nos melhores capítulos, um afiado método de análise (o que não é pouco, dado que, também no campo literário, a burguesia vem ganhando de lavada). Mas não o encara como instrumento de transformação da realidade (o que talvez seja pedir demais, mesmo a um marxista).
Ainda assim, soa estranho que um livro intitulado "Aventuras no Marxismo" não tenha nada a dizer sobre a derrocada da União Soviética e satélites. Se não quer se haver diretamente com o significado da URSS, Berman é obrigado a tangenciá-la no melhor ensaio do livro, o dedicado a Georg Lukács (1885-1971). Não falta aventura na vida desse marxista que, na descrição Berman, "começou a vida na era de Disraeli e Nietzsche e segurou as pontas até a era dos Beatles e das caminhadas na Lua".
Lukács escreveu duas obras-primas, "Teoria do Romance" e "História e Consciência de Classe", foi ministro da Cultura na Hungria em duas revoluções, as de 1919 e 1956, refugiou-se na Alemanha e escapou do nazismo para Moscou, onde a ditadura o processou, condenou, prendeu e o obrigou a abjurar seus livros.
No final da vida, registra Berman, Lukács ainda estava a postos, "denunciando tanto as bombas que atingiram Hanói como os tanques que invadiram Praga".
Lukács provoca um curto-circuito na tese central de "Aventuras no Marxismo", a que aproxima o modernismo do marxismo. Num ensaio famoso, "A Ideologia do Modernismo", Lukács usou o marxismo para atacar toda a bancada modernista. Não escapou quase ninguém: Proust, Joyce, Faulkner, Kafka e Freud.
Berman enfrenta com galhardia o antimodernismo do marxista por excelência. Usa como arsenal teórico a historiografia, a psicologia, a crítica literária e muita, muita dialética marxista.
Consegue uma pequena vitória do marxismo contra a obscuridade, ao fazer do Lukács tantas vezes derrotado uma figura trágica. Se bem que, como repetia o dialético general Golbery, "toda vitória traz embutida uma derrota, e toda derrota traz embutida outra derrota".


Aventuras no Marxismo
Adventures in Marxism    
Autor: Marshall Berman
Tradutor: Sonia Moreira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (306 págs.)





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