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RESENHA DA SEMANA
Consciência do sobrevivente
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Gesualdo Bufalino (1920-1996) foi um "escritor de
um livro só", embora tenha escrito outros além de "O Disseminador da Peste", seu primeiro
romance, que o tornou conhecido em 1981. O último, "Tommaso e o Fotógrafo Cego", foi publicado no ano da sua morte.
Entre um e o outro, também escreveu poesia e memórias.
Bufalino foi um "escritor de
um livro só" por ter dedicado a
vida à literatura e boa parte dela
ao mesmo projeto, que seu primeiro romance anuncia tão
bem. Na entrevista a Leonardo
Sciascia publicada originalmente em 1981 e incluída como prefácio da edição brasileira de "O
Disseminador da Peste", o autor
diz que pensou no romance e o
esboçou por volta de 1950, que o
escreveu em 1971 e que, desde
então, o submeteu a uma "revisão ininterrupta".
O livro permaneceu na gaveta
até o discreto e abnegado professor sexagenário de Comiso,
cidade do interior da Sicília, ceder com hesitação à insistência
dos que já suspeitavam da existência da obra: "Existem escritos
morais que é obrigatório tornar
públicos... Temo que não seja o
meu caso; portanto, por que exibir-me?".
Bufalino foi um homem de letras no sentido clássico. Na adolescência, chegou a partir de
uma tradução italiana em prosa
de Baudelaire para tentar reconstituir o francês em versos:
"Eu perseguia o hálito das cadências originais".
E sua vocação para a literatura
o tornou avesso à exposição, autopromoção e competição da vida literária: "Sempre gostei de
perder. Até no xadrez (quando
jovem era bastante bom nisso)
eu preferia jogar um tipo de
compromisso que se chama "automate", que consiste em obrigar
o adversário a vencer mesmo
que não queira...".
Bufalino foi o exemplo típico
de uma espécie em extinção: o
antigo artesão humanista que
hoje, parafraseando o argentino
Juan José Saer em artigo publicado no último domingo no caderno Mais!, foi substituído por
um novo tipo de artista: o microempresário ocupado com a
administração de sua obra e de
sua carreira.
"O Disseminador da Peste"
conta uma breve história de
amor num sanatório de tuberculosos na Sicília logo depois da
Segunda Guerra, o encontro
amoroso entre dois jovens sobreviventes de guerra, um soldado e uma bailarina, na iminência da morte.
É em grande parte um livro
autobiográfico ("foram dias infelizes, os mais felizes da minha
vida"), escrito numa linguagem
barroca, às vezes retórica, cheia
de imagens e metáforas que poderiam soar incômodas se fossem apenas ornamentos e não
constituíssem a própria forma
da narrativa, sua singularidade.
Sem jamais formulá-la explicitamente, o livro faz o tempo inteiro a mesma pergunta, por trás
do relato desse que será o único
sobrevivente de um grupo de
pessoas afastadas do mundo à
espera da morte: por que se escreve? Uma pergunta implícita,
que um dos doentes por fim responde em sua agonia: "É justamente quando me roubam tudo
que quero presentear alguma
coisa".
Como o sujeito que só dá valor
à vida depois de quase tê-la perdido, que só consegue reconhecer a saúde depois de ter passado pela doença, o escritor escreve para se perguntar, ao mesmo
tempo em que se espanta e comemora, por que está vivo. "O
Disseminador da Peste" é o relato da doença e da morte que lhe
permite, por contraposição, reconhecer-se vivo.
A urgência é o tema do livro:
um estado em que as coisas ganham significado pelo que são,
em que só resta o que realmente
importa. O que explica a abnegação do autor e sua hesitação
inicial em publicar o romance.
A diferença da verdadeira literatura, que Bufalino praticou
em silêncio e com integridade,
vem da tentativa de manter essa
urgência quando tudo mais em
volta tenta dispersá-la e dissolvê-la em carreiras, vaidades e reconhecimentos pessoais. Só esse
desprendimento permite a paciência e a entrega a um trabalho
sem fim, sem resultados imediatos e sem segundas intenções.
"O Disseminador da Peste"
mostra que o que leva o escritor
a escrever é, antes, a consciência
frágil e instantânea de um estado de felicidade e graça em que
nada mais importa, a consciência do sobrevivente, e a vontade
de preservá-la por mais alguns
instantes.
O Disseminador da Peste
Diceria dell'Untore
Autor: Gesualdo Bufalino
Tradução: Ana Maria Carlos
Ilustrações: Maria Alice Gonzales
Editora: Berlendis & Vertecchia
Quanto: R$ 28 (192 págs.)
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