São Paulo, sábado, 27 de outubro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

Consciência do sobrevivente

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Gesualdo Bufalino (1920-1996) foi um "escritor de um livro só", embora tenha escrito outros além de "O Disseminador da Peste", seu primeiro romance, que o tornou conhecido em 1981. O último, "Tommaso e o Fotógrafo Cego", foi publicado no ano da sua morte. Entre um e o outro, também escreveu poesia e memórias.
Bufalino foi um "escritor de um livro só" por ter dedicado a vida à literatura e boa parte dela ao mesmo projeto, que seu primeiro romance anuncia tão bem. Na entrevista a Leonardo Sciascia publicada originalmente em 1981 e incluída como prefácio da edição brasileira de "O Disseminador da Peste", o autor diz que pensou no romance e o esboçou por volta de 1950, que o escreveu em 1971 e que, desde então, o submeteu a uma "revisão ininterrupta".
O livro permaneceu na gaveta até o discreto e abnegado professor sexagenário de Comiso, cidade do interior da Sicília, ceder com hesitação à insistência dos que já suspeitavam da existência da obra: "Existem escritos morais que é obrigatório tornar públicos... Temo que não seja o meu caso; portanto, por que exibir-me?".
Bufalino foi um homem de letras no sentido clássico. Na adolescência, chegou a partir de uma tradução italiana em prosa de Baudelaire para tentar reconstituir o francês em versos: "Eu perseguia o hálito das cadências originais".
E sua vocação para a literatura o tornou avesso à exposição, autopromoção e competição da vida literária: "Sempre gostei de perder. Até no xadrez (quando jovem era bastante bom nisso) eu preferia jogar um tipo de compromisso que se chama "automate", que consiste em obrigar o adversário a vencer mesmo que não queira...".
Bufalino foi o exemplo típico de uma espécie em extinção: o antigo artesão humanista que hoje, parafraseando o argentino Juan José Saer em artigo publicado no último domingo no caderno Mais!, foi substituído por um novo tipo de artista: o microempresário ocupado com a administração de sua obra e de sua carreira.
"O Disseminador da Peste" conta uma breve história de amor num sanatório de tuberculosos na Sicília logo depois da Segunda Guerra, o encontro amoroso entre dois jovens sobreviventes de guerra, um soldado e uma bailarina, na iminência da morte.
É em grande parte um livro autobiográfico ("foram dias infelizes, os mais felizes da minha vida"), escrito numa linguagem barroca, às vezes retórica, cheia de imagens e metáforas que poderiam soar incômodas se fossem apenas ornamentos e não constituíssem a própria forma da narrativa, sua singularidade.
Sem jamais formulá-la explicitamente, o livro faz o tempo inteiro a mesma pergunta, por trás do relato desse que será o único sobrevivente de um grupo de pessoas afastadas do mundo à espera da morte: por que se escreve? Uma pergunta implícita, que um dos doentes por fim responde em sua agonia: "É justamente quando me roubam tudo que quero presentear alguma coisa".
Como o sujeito que só dá valor à vida depois de quase tê-la perdido, que só consegue reconhecer a saúde depois de ter passado pela doença, o escritor escreve para se perguntar, ao mesmo tempo em que se espanta e comemora, por que está vivo. "O Disseminador da Peste" é o relato da doença e da morte que lhe permite, por contraposição, reconhecer-se vivo.
A urgência é o tema do livro: um estado em que as coisas ganham significado pelo que são, em que só resta o que realmente importa. O que explica a abnegação do autor e sua hesitação inicial em publicar o romance.
A diferença da verdadeira literatura, que Bufalino praticou em silêncio e com integridade, vem da tentativa de manter essa urgência quando tudo mais em volta tenta dispersá-la e dissolvê-la em carreiras, vaidades e reconhecimentos pessoais. Só esse desprendimento permite a paciência e a entrega a um trabalho sem fim, sem resultados imediatos e sem segundas intenções.
"O Disseminador da Peste" mostra que o que leva o escritor a escrever é, antes, a consciência frágil e instantânea de um estado de felicidade e graça em que nada mais importa, a consciência do sobrevivente, e a vontade de preservá-la por mais alguns instantes.


O Disseminador da Peste
Diceria dell'Untore     
Autor: Gesualdo Bufalino
Tradução: Ana Maria Carlos
Ilustrações: Maria Alice Gonzales
Editora: Berlendis & Vertecchia
Quanto: R$ 28 (192 págs.)




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