São Paulo, sábado, 27 de outubro de 2001

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LIVROS/LANÇAMENTOS

Viúva de Jorge Amado fala sobre seu livro, "Códigos de Família", que é lançado hoje

Códigos de Zélia e Jorge

CYNARA MENEZES
DA REPORTAGEM LOCAL

Recebido por Jorge Amado vestido com um "bubu" (túnica longa) marroquino, um padre não resiste e ajoelha-se a seus pés: "Que lindo! Parece um imperador romano!". Louco para se livrar do fã inesperado, o escritor manda o motorista levá-lo embora. No caminho, o tal padre pergunta: "O mestre se traja sempre assim?". E o motorista: "Daí para mais!".
"Daí para mais" tornou-se, então, o bordão favorito dos Amado em situações nas quais se quer exagerar. É um dos "Códigos de Família" de que fala Zélia Gattai em seu novo livro, lançado hoje pela Record na Feira do Livro de Porto Alegre. São códigos gozadores, surgidos no convívio com familiares e amigos próximos do casal, que viveu junto por 56 anos.
É um livro despretensioso, que Zélia diz haver escrito sem intenção literária, embora afirme ter, sim, status como autora para sentar na cadeira 23, ocupada pelo marido, na Academia Brasileira de Letras -a eleição será no dia 7 de dezembro. Leia a seguir trechos da entrevista, por telefone.

Folha - Como nasceu o livro?
Zélia Gattai
- Ele não estava na agenda. Escrevi nos seis meses em que Jorge esteve sem poder sair. Estava muito acabrunhada, procurando achar que nada era grave, me enganando. Aí Paloma, minha filha, disse: "Mãe, o jeito é você ir para o computador porque se distrai". Fui me divertindo e trazendo Jorge à vida. Por isso ele aparece no presente. Terminei na véspera de ele morrer.

Folha - A sra. tinha tempo?
Gattai
- Ele ficava deitado até umas 9 da manhã, e às 7 eu já estava no computador. Quando levantava, passava pelo meu gabinete, eu sentia os passos, arrastando o chinelo. Parava e dizia: "Olha, já vou lhe atender. Estou escrevendo um bocado de coisa de você, hein?". Ele ria. Mas falava muito pouco, ficou muito calado.

Folha - Lhe solicitava muito?
Gattai
- Não, coitadinho. Ficava ali parado, mas eu sentia que gostava da minha presença, porque estendia a mão para mim. Eu sabia as particularidades da mão dele. Um calombinho aqui na junta do dedo mínimo, que ele gostava quando eu massageava. Ficava o dia todo com a mão dele na minha. De vez em quando, dizia: coce minha cabeça, e eu coçava.

Folha - Fazia cafuné.
Gattai
- É, fazia tanto cafuné, ele falava: "Mais aqui, desse outro lado". Era a nossa conversa. Ficava assim até o almoço, depois a gente andava no jardim, sentava no banquinho debaixo da mangueira, tomando ar. Inventei cantiguinhas para ele, assim muito bestas. (Ela canta)"Seu Jorge está em casa, está no seu jardim, ao lado de Zélia um cachorro chinfrim." Ele dizia: "Por que chinfrim?" E ria. Cada sorriso dele era um prêmio.

Folha - Como está acompanhando sua candidatura à Academia?
Gattai
- Isso eu não sei, não. Quem achar que eu mereço vota em mim. Quem achar que não mereço não vota. Não vou fazer nenhuma pressão.

Folha - O que a sra. achou das críticas feitas à sua candidatura?
Gattai
- Não achei nada. Quem cospe para cima o cuspe cai na cara. Não vou entrar em polêmica.

Folha - Acha que tem status como escritora para estar lá?
Gattai
- Tenho. Para entrar na Academia precisa ter escrito um livro, eu já escrevi 13.

Folha - Como está levando a vida?
Gattai
- Meus filhos procuram me distrair, mas estou triste. Sinto muita falta da presença de Jorge, mesmo doente, calado. Agora mesmo levantei a cabeça instintivamente para ver a cabecinha branca dele ali na poltrona, mais adiante. Depois, ele está enterrado aqui, a urna com as cinzas estão debaixo da mangueira, ao lado do banco onde a gente sentava. Gosto de ler meu jornal lá.

Folha - Está acompanhando as notícias da guerra?
Gattai
- Estou apavorada, tenho muito receio que se utilizem as armas atômicas. Digo sempre: Jorge se livrou dessa. Ele ia ficar muito apreensivo e desgostoso.

Folha - Esse seu livro não tem nenhuma pretensão literária, não é?
Gattai
- Nunca tenho nenhuma intenção literária. Escrevo coisas que vivi, que me emocionam. Aprendi com Jorge. Ele diz: "Se o escritor quiser transmitir emoção, deve escrever emocionado".

Folha - Sua grande obra então é como memorialista?
Gattai
- Escrevi um romance ("Crônica de uma Namorada"), inventadinho todo por mim, também com emoção. Muita gente diz: gostei tanto do seu romance "A Casa do Rio Vermelho". Não adianta dizer que não é romance, é memória. Comentava isso com Jorge e ele dizia: ""É porque sua vida é um romance, minha filha" (risos). É muito difícil que uma pessoa viva tudo que eu vivi, sabe?

Folha - Qual o código que se aplicaria à história de vocês?
Gattai
- (Rindo) Me veio à cabeça "quem acha encaixa" (algo como "achado não é roubado").



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