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DEPOIMENTO
Autor era a face humana da literatura
MOACYR SCLIAR
Colunista da Folha
Minha admiração por José Cardoso Pires já era antiga quando
vim a conhecê-lo pessoalmente,
num encontro sobre literatura de
língua portuguesa realizado em
Oxford, na Inglaterra.
E esta aproximação ocorreu logo
após um incidente pitoresco. Estávamos, junto com os escritor moçambicano José Craveirinha, num
desses clássicos painéis de encontros literários.
Antes de começar, dividimos o
tempo: dez minutos para cada um.
Cardoso Pires ficou rigorosamente
dentro desse limite, eu também,
mas Craveirinha, empolgado pela
própria narrativa, falou mais de
uma hora, o que fazia as pessoas se
mexerem nas cadeiras, visivelmente inquietas.
Terminado o painel, Cardoso Pire veio falar comigo. Estava consternado -como se, na qualidade
de escritor mais velho e de representante do país mais antigo do
mundo lusófono, tivesse de me
consolar.
²
Grande papo
O importante é que daí resultou
um grande papo, em que me falou
da sua forte ligação com o Brasil,
onde havia passado bastante tempo. Lembro que fiquei impressionado com a sua infinita amabilidade e gentileza.
Grandes escritores não precisam
necessariamente ser grandes pessoas; muitas vezes não o são -como disse Faulkner, escritor é aquele que sacrificaria a própria mãe se
esta fosse a condição para obter
um bom texto, que, em suas palavras "vale qualquer número de velhinhas sacrificadas".
Mas Cardoso Pires era exatamente o contrário. Basta ler "De
Profundis, Valsa Lenta" (1997), para constatá-lo. Ali Cardoso Pires
descreve o primeiro dos dois acidentes vasculares cerebrais que teve (o segundo dos quais veio a vitimá-lo).
Penosa situação. Afásico, cardoso Pires perdeu o controle sobre a
palavra, o que, para um escritor representa um verdadeiro pesadelo.
"O que restaria de mim", pergunta
o escritor, "no homem que fico para ali estendido à espera de coisa
nenhuma?".
Resta, descobrimos, o homem. O
homem generoso que tenta poupar as pessoas e, inclusive, ajudá-las. Fala-nos de pacientes que estão
com ele na enfermaria, referindo-se a eles como "o amigo Martinho"
e o "companheiro Ramires".
O resultado é um texto dilacerante, mas extremamente revelador
da condição humana em situações
extremas.
Morrendo, o autor do magistral
"Balada da Praia dos Cães" deu
ainda seu recado como homem e
escritor. Como grande homem e
grande escritor.
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