São Paulo, terça, 27 de outubro de 1998

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DEPOIMENTO
Autor era a face humana da literatura

MOACYR SCLIAR
Colunista da Folha

Minha admiração por José Cardoso Pires já era antiga quando vim a conhecê-lo pessoalmente, num encontro sobre literatura de língua portuguesa realizado em Oxford, na Inglaterra.
E esta aproximação ocorreu logo após um incidente pitoresco. Estávamos, junto com os escritor moçambicano José Craveirinha, num desses clássicos painéis de encontros literários.
Antes de começar, dividimos o tempo: dez minutos para cada um. Cardoso Pires ficou rigorosamente dentro desse limite, eu também, mas Craveirinha, empolgado pela própria narrativa, falou mais de uma hora, o que fazia as pessoas se mexerem nas cadeiras, visivelmente inquietas.
Terminado o painel, Cardoso Pire veio falar comigo. Estava consternado -como se, na qualidade de escritor mais velho e de representante do país mais antigo do mundo lusófono, tivesse de me consolar.
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Grande papo
O importante é que daí resultou um grande papo, em que me falou da sua forte ligação com o Brasil, onde havia passado bastante tempo. Lembro que fiquei impressionado com a sua infinita amabilidade e gentileza.
Grandes escritores não precisam necessariamente ser grandes pessoas; muitas vezes não o são -como disse Faulkner, escritor é aquele que sacrificaria a própria mãe se esta fosse a condição para obter um bom texto, que, em suas palavras "vale qualquer número de velhinhas sacrificadas".
Mas Cardoso Pires era exatamente o contrário. Basta ler "De Profundis, Valsa Lenta" (1997), para constatá-lo. Ali Cardoso Pires descreve o primeiro dos dois acidentes vasculares cerebrais que teve (o segundo dos quais veio a vitimá-lo).
Penosa situação. Afásico, cardoso Pires perdeu o controle sobre a palavra, o que, para um escritor representa um verdadeiro pesadelo. "O que restaria de mim", pergunta o escritor, "no homem que fico para ali estendido à espera de coisa nenhuma?".
Resta, descobrimos, o homem. O homem generoso que tenta poupar as pessoas e, inclusive, ajudá-las. Fala-nos de pacientes que estão com ele na enfermaria, referindo-se a eles como "o amigo Martinho" e o "companheiro Ramires".
O resultado é um texto dilacerante, mas extremamente revelador da condição humana em situações extremas.
Morrendo, o autor do magistral "Balada da Praia dos Cães" deu ainda seu recado como homem e escritor. Como grande homem e grande escritor.



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