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Escravatura assombra "Cruz e Souza"
INÁCIO ARAUJO
enviado especial a Brasília
Se existe uma oposição perfeita
no cinema brasileiro, ela se dá entre Carlos Diegues e Sylvio Back.
Nos filmes de Diegues tudo se encaminha para o Carnaval, para esse misto de celebração e espetáculo que resgata nossas misérias.
No "Cruz e Souza" de Sylvio
Back (primeiro filme exibido
quinta-feira, na mostra competitiva do 32º Festival de Brasília),
tudo também termina em Carnaval -mas o sentido é bem outro:
a festa como que mumifica e perpetua a miséria, aplaina as contradições e confere suspeita inocência a uma realidade atroz.
Não é a primeira vez que isso
acontece: "Aleluia Gretchen"
(1976) também acabava assim.
Mas em "Cruz e Souza" a ironia
carnavalesca é mais dolorida.
O subtítulo do filme -"O Poeta
do Desterro"- tem mais de um
sentido. Literalmente, Desterro,
hoje Florianópolis, é a cidade onde nasceu Cruz e Souza. Mas há
outros desterros: o do escritor
descendente de escravos que sofreu enormemente por essa condição, o do poeta ignorado por
seus contemporâneos, o do negro
educado entre brancos.
Talvez a principal virtude de
Back seja não facilitar a vida do
espectador, didatizando os muitos deslocamentos que marcaram
a vida de Cruz e Souza. Faz um filme rimado, isto é, cujo centro é a
própria palavra do poeta, seu vocabulário carregado de imagens,
onde dor e volúpia não raro se
confundem.
A idéia do filme é ilustrar cada
poema, acompanhar cada estrofe
com imagens. Nem todas as estrofes visuais do filme são igualmente felizes, mas o conjunto se
impõe, apesar de praticamente
inexistir evolução narrativa, o que
torna pesados os momentos menos felizes. Em contraposição, a
idéia de dar corpo às palavras do
poeta é desenvolvida com coerência, e, embora não explicitada, a
sombra que o filme segue é a da
escravatura, que já foi uma mancha nacional e hoje é um fantasma
que ainda nos assombra.
"A Terceira Morte de Joaquim
Bolívar", de Flavio Cândido, segundo filme da noite, parte de
uma idéia interessante. Coloca os
mesmos personagens -o barbeiro comunista Joaquim Bolívar e o
coronel Gaudêncio, caudilho da
imaginária cidadezinha de Burruchaga- frente a frente em três
momentos históricos: 1964, pouco antes do golpe militar; 1979, na
época da anistia; e nos dias atuais.
O ponto forte é a possibilidade
que abre ao espectador de acompanhar a evolução desses tipos
-mais que personagens- tradicionalmente opostos.
O primeiro ponto fraco é que
"Joaquim Bolívar" mais parece
um conto arbitrariamente transformado em romance. Há inúmeros episódios que parecem estar
ali apenas para que tenhamos um
longa-metragem (inclusive uma
curiosa porém dispersiva aparição de Glauber Rocha com uma
equipe de filmagem).
Cândido filma com correção,
mas quadradamente, e, como parece ser norma no cinema brasileiro atual, empanturra o filme
com música, como se o acompanhamento musical justificasse e
preenchesse o vazio das imagens.
Se "Cruz e Souza" intriga na
medida em que provoca o espectador com sua obscuridade, "Joaquim Bolívar" busca o caminho
oposto, o do didatismo. "Cruz"
indaga. "Bolívar" oferece respostas. Mas fossem as respostas tão
fáceis quanto parecem ser neste
filme, não estaríamos no buraco
(ou pântano?) em que estamos.
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