São Paulo, Sábado, 27 de Novembro de 1999


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Escravatura assombra "Cruz e Souza"

INÁCIO ARAUJO
enviado especial a Brasília

Se existe uma oposição perfeita no cinema brasileiro, ela se dá entre Carlos Diegues e Sylvio Back. Nos filmes de Diegues tudo se encaminha para o Carnaval, para esse misto de celebração e espetáculo que resgata nossas misérias.
No "Cruz e Souza" de Sylvio Back (primeiro filme exibido quinta-feira, na mostra competitiva do 32º Festival de Brasília), tudo também termina em Carnaval -mas o sentido é bem outro: a festa como que mumifica e perpetua a miséria, aplaina as contradições e confere suspeita inocência a uma realidade atroz.
Não é a primeira vez que isso acontece: "Aleluia Gretchen" (1976) também acabava assim. Mas em "Cruz e Souza" a ironia carnavalesca é mais dolorida.
O subtítulo do filme -"O Poeta do Desterro"- tem mais de um sentido. Literalmente, Desterro, hoje Florianópolis, é a cidade onde nasceu Cruz e Souza. Mas há outros desterros: o do escritor descendente de escravos que sofreu enormemente por essa condição, o do poeta ignorado por seus contemporâneos, o do negro educado entre brancos.
Talvez a principal virtude de Back seja não facilitar a vida do espectador, didatizando os muitos deslocamentos que marcaram a vida de Cruz e Souza. Faz um filme rimado, isto é, cujo centro é a própria palavra do poeta, seu vocabulário carregado de imagens, onde dor e volúpia não raro se confundem.
A idéia do filme é ilustrar cada poema, acompanhar cada estrofe com imagens. Nem todas as estrofes visuais do filme são igualmente felizes, mas o conjunto se impõe, apesar de praticamente inexistir evolução narrativa, o que torna pesados os momentos menos felizes. Em contraposição, a idéia de dar corpo às palavras do poeta é desenvolvida com coerência, e, embora não explicitada, a sombra que o filme segue é a da escravatura, que já foi uma mancha nacional e hoje é um fantasma que ainda nos assombra.
"A Terceira Morte de Joaquim Bolívar", de Flavio Cândido, segundo filme da noite, parte de uma idéia interessante. Coloca os mesmos personagens -o barbeiro comunista Joaquim Bolívar e o coronel Gaudêncio, caudilho da imaginária cidadezinha de Burruchaga- frente a frente em três momentos históricos: 1964, pouco antes do golpe militar; 1979, na época da anistia; e nos dias atuais.
O ponto forte é a possibilidade que abre ao espectador de acompanhar a evolução desses tipos -mais que personagens- tradicionalmente opostos.
O primeiro ponto fraco é que "Joaquim Bolívar" mais parece um conto arbitrariamente transformado em romance. Há inúmeros episódios que parecem estar ali apenas para que tenhamos um longa-metragem (inclusive uma curiosa porém dispersiva aparição de Glauber Rocha com uma equipe de filmagem).
Cândido filma com correção, mas quadradamente, e, como parece ser norma no cinema brasileiro atual, empanturra o filme com música, como se o acompanhamento musical justificasse e preenchesse o vazio das imagens.
Se "Cruz e Souza" intriga na medida em que provoca o espectador com sua obscuridade, "Joaquim Bolívar" busca o caminho oposto, o do didatismo. "Cruz" indaga. "Bolívar" oferece respostas. Mas fossem as respostas tão fáceis quanto parecem ser neste filme, não estaríamos no buraco (ou pântano?) em que estamos.


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