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MARCELO COELHO
No centenário de Drummond, o país procura seu poeta
De Tônia Carrero a Leo Jaime, de Marta Suplicy a Miguel Falabella, de Norma Bengell a Aécio Neves, parece haver brasileiros de todos os tipos e para todos os gostos em "Reunião: o Brasil Lendo Drummond", álbum de
quatro CDs em homenagem ao
centenário do poeta.
Paulinho Lima, que organizou
a coleção para a gravadora Luzes
da Cidade, explica na contracapa: "Aqui 148 brasileiros festejam
seu centenário dizendo versos.
Uns foram chamados, outros se
ofereceram, outros se revelaram.
De pequenas e grandes cidades
chegaram estas vozes de tons e
timbres variados para colorir
suas palavras".
O texto e o projeto traduzem
bem o clima das comemorações: o
país parece definitivamente ter
tomado posse de Carlos Drummond de Andrade, elegendo-o
para o posto, há muito tempo vago, de "poeta nacional".
Poeta nacional, num sentido
bem específico, quase geopolítico
do termo. Os versos de Drummond saberiam expressar como
que a personalidade, o caráter, a
essência secreta da alma brasileira; seriam como instrumentos de
auto-reconhecimento, de afirmação de nossa identidade.
É um pouco estranho, contudo,
falar em "afirmação" a propósito
de Drummond, cuja poesia é feita
de muitas negativas, em especial
no que diz respeito a patriotadas
e civismos. "Eu também já fui
brasileiro/ moreno como vocês",
diz um dos poemas mais antigos
de Drummond. "Eu irônico deslizava/ satisfeito de ter meu ritmo",
continua, e depois encerra mineiramente: "Hoje não deslizo mais
não,/ não sou irônico mais não,/
não tenho ritmo mais não".
Talvez seja até em razão de tais
negativas que Drummond assuma um papel de poeta "nacional". Poderíamos imaginar que
Vinicius de Moraes correspondesse melhor a essa imagem, sendo
mais doce, envolvente, confiante,
sambista e tropical. Mas justamente queremos fugir do estereótipo: melhor reconhecer-se, ou
procurar-se, na figura reservada e
tímida de Drummond, no seu humor desencantado e cheio de
compostura.
É o Drummond dos primeiros
livros, "Alguma Poesia", "Brejo
das Almas", "José". Certas criações suas se transformaram praticamente em folclore, em lugar-comum: "No meio do caminho tinha uma pedra", "João amava
Teresa que amava Raimundo
que amava Maria...", "E agora,
José?" etc. etc.
Fico um pouco incomodado,
pois não acho esses poemas os
melhores de Drummond. Quando
aparece alguém dizendo que não
gosta muito da sua poesia, logo
imagino que é a essa fase que está
se referindo.
Mas há pior. Ouvindo os CDs
dessa coleção, em que os poemas
estão em ordem cronológica, espantei-me com a quantidade de
coisas facilitárias, às vezes constrangedoras, que se acumulam no
último disco. Um exemplo. "As
mulheres gulosas/ que chupam
picolé/ -diz um sábio que sabe-/ são mulheres carentes/ e o
chupam lentamente/ qual se vara
chupassem (...)."
Mesmo sem ir tão longe, há um
espírito indulgente, brasileirinho,
levemente crítico, nos muitos poemas-crônicas sobre ecologia, Dia
dos Namorados, futebol, democracia, sociedade de consumo,
que é meio irritante no Drummond da década de 70 em diante.
Fico desconfiando se na fraqueza
dos textos dessa fase não haverá
mais um motivo para a glorificação atual do poeta.
A televisão insiste, por exemplo,
na idéia de que Drummond foi o
poeta do cotidiano, das coisas
simples, das experiências comuns.
O que é verdade; mas com isso somos levados a esquecer a diferença enorme entre o "homem do povo Charles Chaplin" , sobre quem
Drummond escrevia na década
de 40, e o homem que, décadas
depois, ironiza banalmente as etiquetas das roupas que está vestindo: "Eu é que mimosamente pago/ para anunciar, para vender
(...)".
Um pouco desse som falso, dessa
desafinação entre as várias fases
de Drummond, transfere-se para
os CDs. Não são muitos os casos
em que a declamação se faz num
registro adequado. Às vezes, um
jeito excessivamente teatral, convencionalíssimo, estraga poemas
importantes; ou então, fugindo
do palco, o declamador investe
naquele coloquial típico dos apresentadores de televisão, falsíssimo
também.
Mas há momentos em que encontramos, nesse álbum, o calor e
a clareza de algumas inflexões
-nordestinas, paulistas, cariocas, mas as mineiras são incomparáveis- recitando os maiores
poemas de Drummond.
Poemas como "Versos à Boca
da Noite", "O Elefante", "Retrato
de Família", "Desaparecimento
de Luísa Porto", "Morte das Casas de Ouro Preto", para não citar
o célebre "A Máquina do Mundo", parecem, cada um deles,
constituir-se no centro ou no eixo
da obra do poeta.
É como se cada poema desses tivesse sido construído com tal poder gravitacional que tudo -os
detalhes do cotidiano, as grandes
indagações metafísicas, a política,
a morte- coubesse, entrasse e se
reunisse em sua estrutura. No
meio de um poema, sem que nada fizesse necessária sua irrupção,
surgem imagens e mais imagens,
e palavras se combinam conforme uma atração desconhecida.
Essa "centralidade" de Drummond, a força agregadora e magnética de seus maiores poemas,
torna bem adequado o nome de
"Reunião", dado ao livro em que
se coligiu o principal da obra
drummondiana, e que agora se
estende para o álbum de CDs. E
talvez se possa também dizer que
a poesia de Drummond passa
longe de qualquer "identidade
nacional" forjada numa mesmice
de conversinha cotidiana. Ganha
sua maior força quando vê, em
cada homem comum, não um diminuto e trivializado exemplar
da classe média urbana, mas o
centro singular de um universo
- universo que divide com todos
os outros homens.
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