São Paulo, quarta-feira, 27 de novembro de 2002

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MARCELO COELHO

No centenário de Drummond, o país procura seu poeta

De Tônia Carrero a Leo Jaime, de Marta Suplicy a Miguel Falabella, de Norma Bengell a Aécio Neves, parece haver brasileiros de todos os tipos e para todos os gostos em "Reunião: o Brasil Lendo Drummond", álbum de quatro CDs em homenagem ao centenário do poeta.
Paulinho Lima, que organizou a coleção para a gravadora Luzes da Cidade, explica na contracapa: "Aqui 148 brasileiros festejam seu centenário dizendo versos. Uns foram chamados, outros se ofereceram, outros se revelaram. De pequenas e grandes cidades chegaram estas vozes de tons e timbres variados para colorir suas palavras".
O texto e o projeto traduzem bem o clima das comemorações: o país parece definitivamente ter tomado posse de Carlos Drummond de Andrade, elegendo-o para o posto, há muito tempo vago, de "poeta nacional".
Poeta nacional, num sentido bem específico, quase geopolítico do termo. Os versos de Drummond saberiam expressar como que a personalidade, o caráter, a essência secreta da alma brasileira; seriam como instrumentos de auto-reconhecimento, de afirmação de nossa identidade.
É um pouco estranho, contudo, falar em "afirmação" a propósito de Drummond, cuja poesia é feita de muitas negativas, em especial no que diz respeito a patriotadas e civismos. "Eu também já fui brasileiro/ moreno como vocês", diz um dos poemas mais antigos de Drummond. "Eu irônico deslizava/ satisfeito de ter meu ritmo", continua, e depois encerra mineiramente: "Hoje não deslizo mais não,/ não sou irônico mais não,/ não tenho ritmo mais não".
Talvez seja até em razão de tais negativas que Drummond assuma um papel de poeta "nacional". Poderíamos imaginar que Vinicius de Moraes correspondesse melhor a essa imagem, sendo mais doce, envolvente, confiante, sambista e tropical. Mas justamente queremos fugir do estereótipo: melhor reconhecer-se, ou procurar-se, na figura reservada e tímida de Drummond, no seu humor desencantado e cheio de compostura.
É o Drummond dos primeiros livros, "Alguma Poesia", "Brejo das Almas", "José". Certas criações suas se transformaram praticamente em folclore, em lugar-comum: "No meio do caminho tinha uma pedra", "João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria...", "E agora, José?" etc. etc.
Fico um pouco incomodado, pois não acho esses poemas os melhores de Drummond. Quando aparece alguém dizendo que não gosta muito da sua poesia, logo imagino que é a essa fase que está se referindo.
Mas há pior. Ouvindo os CDs dessa coleção, em que os poemas estão em ordem cronológica, espantei-me com a quantidade de coisas facilitárias, às vezes constrangedoras, que se acumulam no último disco. Um exemplo. "As mulheres gulosas/ que chupam picolé/ -diz um sábio que sabe-/ são mulheres carentes/ e o chupam lentamente/ qual se vara chupassem (...)."
Mesmo sem ir tão longe, há um espírito indulgente, brasileirinho, levemente crítico, nos muitos poemas-crônicas sobre ecologia, Dia dos Namorados, futebol, democracia, sociedade de consumo, que é meio irritante no Drummond da década de 70 em diante. Fico desconfiando se na fraqueza dos textos dessa fase não haverá mais um motivo para a glorificação atual do poeta.
A televisão insiste, por exemplo, na idéia de que Drummond foi o poeta do cotidiano, das coisas simples, das experiências comuns. O que é verdade; mas com isso somos levados a esquecer a diferença enorme entre o "homem do povo Charles Chaplin" , sobre quem Drummond escrevia na década de 40, e o homem que, décadas depois, ironiza banalmente as etiquetas das roupas que está vestindo: "Eu é que mimosamente pago/ para anunciar, para vender (...)".
Um pouco desse som falso, dessa desafinação entre as várias fases de Drummond, transfere-se para os CDs. Não são muitos os casos em que a declamação se faz num registro adequado. Às vezes, um jeito excessivamente teatral, convencionalíssimo, estraga poemas importantes; ou então, fugindo do palco, o declamador investe naquele coloquial típico dos apresentadores de televisão, falsíssimo também.
Mas há momentos em que encontramos, nesse álbum, o calor e a clareza de algumas inflexões -nordestinas, paulistas, cariocas, mas as mineiras são incomparáveis- recitando os maiores poemas de Drummond.
Poemas como "Versos à Boca da Noite", "O Elefante", "Retrato de Família", "Desaparecimento de Luísa Porto", "Morte das Casas de Ouro Preto", para não citar o célebre "A Máquina do Mundo", parecem, cada um deles, constituir-se no centro ou no eixo da obra do poeta.
É como se cada poema desses tivesse sido construído com tal poder gravitacional que tudo -os detalhes do cotidiano, as grandes indagações metafísicas, a política, a morte- coubesse, entrasse e se reunisse em sua estrutura. No meio de um poema, sem que nada fizesse necessária sua irrupção, surgem imagens e mais imagens, e palavras se combinam conforme uma atração desconhecida.
Essa "centralidade" de Drummond, a força agregadora e magnética de seus maiores poemas, torna bem adequado o nome de "Reunião", dado ao livro em que se coligiu o principal da obra drummondiana, e que agora se estende para o álbum de CDs. E talvez se possa também dizer que a poesia de Drummond passa longe de qualquer "identidade nacional" forjada numa mesmice de conversinha cotidiana. Ganha sua maior força quando vê, em cada homem comum, não um diminuto e trivializado exemplar da classe média urbana, mas o centro singular de um universo - universo que divide com todos os outros homens.


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