São Paulo, Segunda-feira, 27 de Dezembro de 1999


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FERNANDO GABEIRA

Berlim, um ensaio para o século 21


Siglo 20, cambalacho... A virada do milênio pode ser comemorada agora ou no ano que vem. Mas a história, com seu curso acidentado, não respeita o calendário. Para mim, quando caiu o Muro de Berlim, senti que um período estava se esgotando. E viajei para lá com a esperança de um turista que vai testemunhar um verdadeiro fim de século.
Falsos finais, recomeço, tudo isso depende muito do observador. Como veria um esportista o momento real do fim do século? O que diriam os músicos, os religiosos? O que diriam aqueles que não se regulam pelas nossas contas?
A comemoração do fim do século não deixa de ser uma espécie de provincianismo cristão. Mas faz pensar. Em Berlim, no fim da década de 80, havia para mim um símbolo do século 21 se erguendo dos escombros.
Era a Potsdamer Platz, um lugar comprado pelas multinacionais e que seria o ponto de referência para o replanejamento da cidade.
Andava com minha câmera pelos canteiros de obras, vendo os ônibus repletos de turistas estacionarem num dos prédios. Eles consultavam programas de computador, vídeos e mapas e sentiam com imagens como seria a Berlim do século 21. Compravam camisetas, souvenires e saíam dali com uma leve idéia do futuro.
Naquele momento, a Iugoslávia começava a explodir, mas todos achávamos que aquilo era apenas a decorrência da queda do Muro de Berlim e que o socialismo ainda viveria alguns espasmos, como uma estrela que se desintegra ao longo dos anos.
O fim do século para nós, entretanto, talvez fosse apenas uma outra ilusão, como a de agora, com esses fogos e essas festas. Alguma coisa já estava morrendo antes, e talvez se possa chamá-la de projeto da modernidade. Sim, porque antes que o século se esgotasse cronologicamente o pensamento moderno, com sua crença na razão que nos levaria a um processo civilizatório universal, seu aval à ciência, considerada a modalidade principal do saber, tudo isso, já estava levemente apodrecido no embate histórico.
Vivemos momentos em que a globalização parece triunfante. Parece, apenas. Com a queda do Muro, proclamou-se o fim da história. O capitalismo iria alcançar todas as regiões do mundo, levando com ele o regime democrático e o "american way of life".
Falso fim de época porque, na verdade, o que estava se esgotando também era a crença de que teríamos um modelo universal, válido para todas as culturas, independente de suas singularidades. Falso fim de época, pois o que está se esgotando também no processo cristão e moderno é a crença de que o único valor está no ser humano, de que plantas e bichos existem apenas para servi-lo.
É tanta coisa acabando e começando, são tantas cortinas se fechando e se abrindo para novos cenários históricos que, se alguém me desejar um feliz milênio, claro que vou retribuir com a mesma frase. No fundo, entretanto, continuo me perguntando: o que queremos dizer com isso, o que está verdadeiramente começando, o que merece ser enterrado por já estar meio "faisandé", como dizem os franceses?
A situação se complica mais quando constatamos que os ritmos históricos globais repercutem com velocidades diferentes. Por exemplo, o impacto da queda do Muro de Berlim no Brasil não foi imediato. É um longo processo. Se, como dizemos na gíria, a ficha demora tanto a cair para um fato tão ostensivo como a queda do Muro, imagine a tomada de consciência de uma nova relação com a natureza, despojada do conteúdo antropocêntrico que o projeto moderno imprimiu.
Será que o século 21 encontrará sociedades satisfeitas com o que têm? Será que a única legitimação do processo político é o crescimento material? Nenhuma dessas respostas está pronta. O fim de um projeto universal, válido para todos, coloca diante de nós uma humilde tarefa: como administrar as diferenças culturais para que se desdobrem pacificamente?
Vamos tomar um porre, vamos nos vestir de branco, vamos saudar a chegada do ano 2000 e a partida de nossas grandes certezas. Por enquanto, é o que dá para fazer, com esse trânsito e o calor de dezembro.



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