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FERNANDO GABEIRA
Berlim, um ensaio para o século 21
Siglo 20, cambalacho... A virada
do milênio pode ser comemorada
agora ou no ano que vem. Mas a
história, com seu curso acidentado, não respeita o calendário. Para mim, quando caiu o Muro de
Berlim, senti que um período estava se esgotando. E viajei para lá
com a esperança de um turista
que vai testemunhar um verdadeiro fim de século.
Falsos finais, recomeço, tudo isso depende muito do observador.
Como veria um esportista o momento real do fim do século? O
que diriam os músicos, os religiosos? O que diriam aqueles que não
se regulam pelas nossas contas?
A comemoração do fim do século não deixa de ser uma espécie de
provincianismo cristão. Mas faz
pensar. Em Berlim, no fim da década de 80, havia para mim um
símbolo do século 21 se erguendo
dos escombros.
Era a Potsdamer Platz, um lugar comprado pelas multinacionais e que seria o ponto de referência para o replanejamento da
cidade.
Andava com minha câmera pelos canteiros de obras, vendo os
ônibus repletos de turistas estacionarem num dos prédios. Eles consultavam programas de computador, vídeos e mapas e sentiam
com imagens como seria a Berlim
do século 21. Compravam camisetas, souvenires e saíam dali com
uma leve idéia do futuro.
Naquele momento, a Iugoslávia
começava a explodir, mas todos
achávamos que aquilo era apenas
a decorrência da queda do Muro
de Berlim e que o socialismo ainda viveria alguns espasmos, como
uma estrela que se desintegra ao
longo dos anos.
O fim do século para nós, entretanto, talvez fosse apenas uma
outra ilusão, como a de agora,
com esses fogos e essas festas. Alguma coisa já estava morrendo
antes, e talvez se possa chamá-la
de projeto da modernidade. Sim,
porque antes que o século se esgotasse cronologicamente o pensamento moderno, com sua crença
na razão que nos levaria a um
processo civilizatório universal,
seu aval à ciência, considerada a
modalidade principal do saber,
tudo isso, já estava levemente
apodrecido no embate histórico.
Vivemos momentos em que a
globalização parece triunfante.
Parece, apenas. Com a queda do
Muro, proclamou-se o fim da história. O capitalismo iria alcançar
todas as regiões do mundo, levando com ele o regime democrático e
o "american way of life".
Falso fim de época porque, na
verdade, o que estava se esgotando também era a crença de que teríamos um modelo universal, válido para todas as culturas, independente de suas singularidades.
Falso fim de época, pois o que está
se esgotando também no processo
cristão e moderno é a crença de
que o único valor está no ser humano, de que plantas e bichos
existem apenas para servi-lo.
É tanta coisa acabando e começando, são tantas cortinas se fechando e se abrindo para novos
cenários históricos que, se alguém
me desejar um feliz milênio, claro
que vou retribuir com a mesma
frase. No fundo, entretanto, continuo me perguntando: o que queremos dizer com isso, o que está
verdadeiramente começando, o
que merece ser enterrado por já
estar meio "faisandé", como dizem os franceses?
A situação se complica mais
quando constatamos que os ritmos históricos globais repercutem
com velocidades diferentes. Por
exemplo, o impacto da queda do
Muro de Berlim no Brasil não foi
imediato. É um longo processo. Se,
como dizemos na gíria, a ficha demora tanto a cair para um fato
tão ostensivo como a queda do
Muro, imagine a tomada de consciência de uma nova relação com
a natureza, despojada do conteúdo antropocêntrico que o projeto
moderno imprimiu.
Será que o século 21 encontrará
sociedades satisfeitas com o que
têm? Será que a única legitimação
do processo político é o crescimento material? Nenhuma dessas respostas está pronta. O fim de um
projeto universal, válido para todos, coloca diante de nós uma humilde tarefa: como administrar as
diferenças culturais para que se
desdobrem pacificamente?
Vamos tomar um porre, vamos
nos vestir de branco, vamos saudar a chegada do ano 2000 e a
partida de nossas grandes certezas. Por enquanto, é o que dá para
fazer, com esse trânsito e o calor
de dezembro.
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