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Um iceberg à deriva
CHEGA AO BRASIL NOVO LIVRO DE ARIEL DORFMAN
Escritor satiriza o Chile moderno em narrativa inspirada em romance picaresco tradicional
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SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
Um imenso iceberg foi o destaque do pavilhão chileno na Exposição Universal de Sevilha, em 92.
Um ano antes, quando Ariel
Dorfman soube do projeto, em
que o governo chileno arrancaria
um pedaço das geleiras da Antártida para apresentar ao mundo a
imagem de um Chile moderno,
com recursos tecnológicos de Primeiro Mundo, viu que tinha ali o
enredo para um romance.
O livro "A Babá e o Iceberg", seu
sexto romance, que acaba de ser
lançado no Brasil, é uma comédia
sobre o Chile pós-ditadura Pinochet. Uma alegoria sobre o que se
passava no inconsciente de um
país deixado à deriva numa recente e imperfeita democracia,
como um iceberg descolado de
seu local de formação.
"A crise política que o Chile viveu nos anos que se seguiram ao
fim da ditadura também criou
uma crise social", disse Dorfman,
58, em entrevista à Folha, por telefone, dos EUA, onde vive e dá
aulas. Leia abaixo os principais
trechos da entrevista.
Folha - O livro é uma ficção sobre
um episódio real, a ida do iceberg a
Sevilha. Além do iceberg, algo mais
é real no romance?
Ariel Dorfman - Historicamente,
fui fiel à trajetória do iceberg. Mas
fui criando uma história paralela
nas sombras. Meu enredo desenvolve uma sátira a partir do inconsciente coletivo do Chile, que
se manifesta em relação ao iceberg. O que descrevo não é a realidade, mas uma fantasia que explora o subconsciente histórico,
muito mais verdadeiro do que o
que ocorre na superfície.
Folha - O iceberg revela as contradições sobre o futuro da América
Latina, e a babá é um símbolo do
passado servil e colonial. É essa a
oposição que está no título?
Dorfman - A minha intenção
fundamental era cômica. Juntar
duas coisas que não têm nada em
comum, que seria absurdo trazer
juntas, como uma babá e um iceberg. A partir daí, pode-se pensar
que o iceberg representa o futuro,
e a babá, o passado. Mas eu mostro que dos dois lados há equívocos. O iceberg não é o futuro, mas
o conjunto das contradições do
Chile. E a babá não é o passado.
Com seu saber ancestral, ela mostra que é mais moderna que os
outros, pode manipulá-los, sabe o
que pensam e muito mais.
Folha - No diálogo fantástico que
a babá trava com Che Guevara no
céu, ela critica o revolucionário por
ele não conhecer os costumes de
sua gente. A babá mostra que sabia
mais sobre o Chile do que Che?
Dorfman - Sim, a babá tem o que
ensinar até mesmo a ele, que não
sabe cozinhar e, por isso, não pode conhecer o cotidiano das pessoas comuns. Ela mostra que, se
ele conhecesse os pratos típicos da
América Latina, teríamos tido um
outro tipo de revolução.
Folha - E qual era a sua posição
particular a respeito do iceberg?
Dorfman - Eu comecei suspeitando. Achei que era uma espécie
de intenção de branquear, de esquecer o passado. Mas aos poucos
fui me apaixonando pelo iceberg.
Ele passou a ser um território em
disputa onde, a partir da natureza
americana, era possível projetar o
futuro de diferentes interessados.
Virou um painel das possibilidades chilenas. Vasto, como o imaginário da América Latina.
Folha - Quem tem razão entre os
personagens com quem Gabriel (o
protagonista) se confronta: Cristóbal, o individualista, Pancho, o que
defende a luta armada, ou Pablo,
que opta pelo processo político para tomar o poder?
Dorfman - Eu não podia decidir
quem tinha a razão. Quis ressaltar
a realidade e deixar que a razão
surgisse. O bem e o mal aparecem
de forma mais ambivalente que
em outras obras minhas.
Folha - Essas três posições ainda
existem no Chile atual?
Dorfman - Sim, a sátira é sobre a
minha geração, mas tenta ir além,
mostrando as sequelas na geração
atual. São três posições que saem
da derrota política da geração de
60 e 70. E ainda existem: a reformista modernizadora, a que diz
que a política não interessa e a que
defende que a utopia continua.
Folha - Essa é a herança política e
cultural dessa geração?
Dorfman - Sim, o confrontamento. O que nós não resolvemos é o
que agora têm de resolver os mais
jovens. E junto às três posições
dos machos do livro estão os mitos, os machos míticos, como Colombo, Che Guevara, Pinochet.
Folha - Há uma mudança de estilo
em sua narrativa. O tema político
segue sendo essencial, mas há o cômico e o fantástico com maior ênfase. O que você está buscando?
Dorfman - Eu havia escrito novelas claustrofóbicas, como "Uma
Vida em Trânsito" e "Konfidenz",
e queria fazer um romance aberto, que mostrasse um pouco melhor como eu sou em minha vida
pessoal, mais alegre, expansivo e
caoticamente imaginativo. Queria uma novela mais brasileira.
Folha - Por isso o cômico?
Dorfman - O cômico, o picaresco, queria ir além da ditadura.
Queria um personagem que, em
vez de ser militante, fosse alguém
que não tivesse nenhum interesse
em mudar o mundo. E queria
submetê-lo ao peso da história.
Folha - Fale sobre a inspiração picaresca.
Dorfman - Tomar um personagem que se achasse mais inteligente que os outros me interessava. E que percebesse no fim que o
burlado é ele. O pícaro anda pelo
mundo tratando de ser mais vivo
que os demais. O romance picaresco é a grande novela narrativa
do Ocidente porque mostra um
ser urbano que, sem ter outros
meios além de si mesmo, tenta viver num mundo degradado. No
fim, descobre que havia esquecido o principal.
Folha - Mas você sente que está
abandonando os temas políticos
em busca do fantástico?
Dorfman - Eu queria fazer algo
que tomasse a tradição da fantasia
e do exagero latino-americanos e
que mostrasse como essa é a forma com que nossa imaginação
desafia o Estado, o esquecimento
e a morte. Até agora trabalhava
com o peso da história e dos mortos. Quero sair um pouco disso.
Folha - Você se cansou de apontar
as agruras da ditadura Pinochet?
Dorfman - Queria que parassem
de dizer que Dorfman é apenas o
antipinochetista, o que se ocupa
dos desaparecidos. Dediquei boa
parte da minha vida a temas de direitos humanos na América Latina. Mas é injusto que pensem que
não posso ser mais experimental.
Folha - Mas você ainda opina sobre o caso Pinochet.
Dorfman - Eu tenho de dizer o
que penso. É minha responsabilidade histórica. Estou casado com
Pinochet, e não é um matrimônio
que me agrada. Eu preciso assumir que sua sombra é parte de minha vida. Gostaria que meu país
se libertasse da sombra de Pinochet para que eu também pudesse
ficar livre dele.
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