São Paulo, quarta-feira, 27 de dezembro de 2000

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Um iceberg à deriva



CHEGA AO BRASIL NOVO LIVRO DE ARIEL DORFMAN


Escritor satiriza o Chile moderno em narrativa inspirada em romance picaresco tradicional


SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL



Um imenso iceberg foi o destaque do pavilhão chileno na Exposição Universal de Sevilha, em 92. Um ano antes, quando Ariel Dorfman soube do projeto, em que o governo chileno arrancaria um pedaço das geleiras da Antártida para apresentar ao mundo a imagem de um Chile moderno, com recursos tecnológicos de Primeiro Mundo, viu que tinha ali o enredo para um romance.
O livro "A Babá e o Iceberg", seu sexto romance, que acaba de ser lançado no Brasil, é uma comédia sobre o Chile pós-ditadura Pinochet. Uma alegoria sobre o que se passava no inconsciente de um país deixado à deriva numa recente e imperfeita democracia, como um iceberg descolado de seu local de formação.
"A crise política que o Chile viveu nos anos que se seguiram ao fim da ditadura também criou uma crise social", disse Dorfman, 58, em entrevista à Folha, por telefone, dos EUA, onde vive e dá aulas. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Folha - O livro é uma ficção sobre um episódio real, a ida do iceberg a Sevilha. Além do iceberg, algo mais é real no romance?
Ariel Dorfman -
Historicamente, fui fiel à trajetória do iceberg. Mas fui criando uma história paralela nas sombras. Meu enredo desenvolve uma sátira a partir do inconsciente coletivo do Chile, que se manifesta em relação ao iceberg. O que descrevo não é a realidade, mas uma fantasia que explora o subconsciente histórico, muito mais verdadeiro do que o que ocorre na superfície.

Folha - O iceberg revela as contradições sobre o futuro da América Latina, e a babá é um símbolo do passado servil e colonial. É essa a oposição que está no título?
Dorfman -
A minha intenção fundamental era cômica. Juntar duas coisas que não têm nada em comum, que seria absurdo trazer juntas, como uma babá e um iceberg. A partir daí, pode-se pensar que o iceberg representa o futuro, e a babá, o passado. Mas eu mostro que dos dois lados há equívocos. O iceberg não é o futuro, mas o conjunto das contradições do Chile. E a babá não é o passado. Com seu saber ancestral, ela mostra que é mais moderna que os outros, pode manipulá-los, sabe o que pensam e muito mais.

Folha - No diálogo fantástico que a babá trava com Che Guevara no céu, ela critica o revolucionário por ele não conhecer os costumes de sua gente. A babá mostra que sabia mais sobre o Chile do que Che?
Dorfman -
Sim, a babá tem o que ensinar até mesmo a ele, que não sabe cozinhar e, por isso, não pode conhecer o cotidiano das pessoas comuns. Ela mostra que, se ele conhecesse os pratos típicos da América Latina, teríamos tido um outro tipo de revolução.

Folha - E qual era a sua posição particular a respeito do iceberg?
Dorfman -
Eu comecei suspeitando. Achei que era uma espécie de intenção de branquear, de esquecer o passado. Mas aos poucos fui me apaixonando pelo iceberg. Ele passou a ser um território em disputa onde, a partir da natureza americana, era possível projetar o futuro de diferentes interessados. Virou um painel das possibilidades chilenas. Vasto, como o imaginário da América Latina.

Folha - Quem tem razão entre os personagens com quem Gabriel (o protagonista) se confronta: Cristóbal, o individualista, Pancho, o que defende a luta armada, ou Pablo, que opta pelo processo político para tomar o poder?
Dorfman -
Eu não podia decidir quem tinha a razão. Quis ressaltar a realidade e deixar que a razão surgisse. O bem e o mal aparecem de forma mais ambivalente que em outras obras minhas.

Folha - Essas três posições ainda existem no Chile atual?
Dorfman -
Sim, a sátira é sobre a minha geração, mas tenta ir além, mostrando as sequelas na geração atual. São três posições que saem da derrota política da geração de 60 e 70. E ainda existem: a reformista modernizadora, a que diz que a política não interessa e a que defende que a utopia continua.

Folha - Essa é a herança política e cultural dessa geração?
Dorfman -
Sim, o confrontamento. O que nós não resolvemos é o que agora têm de resolver os mais jovens. E junto às três posições dos machos do livro estão os mitos, os machos míticos, como Colombo, Che Guevara, Pinochet.

Folha - Há uma mudança de estilo em sua narrativa. O tema político segue sendo essencial, mas há o cômico e o fantástico com maior ênfase. O que você está buscando?
Dorfman -
Eu havia escrito novelas claustrofóbicas, como "Uma Vida em Trânsito" e "Konfidenz", e queria fazer um romance aberto, que mostrasse um pouco melhor como eu sou em minha vida pessoal, mais alegre, expansivo e caoticamente imaginativo. Queria uma novela mais brasileira.

Folha - Por isso o cômico?
Dorfman -
O cômico, o picaresco, queria ir além da ditadura. Queria um personagem que, em vez de ser militante, fosse alguém que não tivesse nenhum interesse em mudar o mundo. E queria submetê-lo ao peso da história.

Folha - Fale sobre a inspiração picaresca.
Dorfman -
Tomar um personagem que se achasse mais inteligente que os outros me interessava. E que percebesse no fim que o burlado é ele. O pícaro anda pelo mundo tratando de ser mais vivo que os demais. O romance picaresco é a grande novela narrativa do Ocidente porque mostra um ser urbano que, sem ter outros meios além de si mesmo, tenta viver num mundo degradado. No fim, descobre que havia esquecido o principal.

Folha - Mas você sente que está abandonando os temas políticos em busca do fantástico?
Dorfman -
Eu queria fazer algo que tomasse a tradição da fantasia e do exagero latino-americanos e que mostrasse como essa é a forma com que nossa imaginação desafia o Estado, o esquecimento e a morte. Até agora trabalhava com o peso da história e dos mortos. Quero sair um pouco disso.

Folha - Você se cansou de apontar as agruras da ditadura Pinochet?
Dorfman -
Queria que parassem de dizer que Dorfman é apenas o antipinochetista, o que se ocupa dos desaparecidos. Dediquei boa parte da minha vida a temas de direitos humanos na América Latina. Mas é injusto que pensem que não posso ser mais experimental.

Folha - Mas você ainda opina sobre o caso Pinochet.
Dorfman -
Eu tenho de dizer o que penso. É minha responsabilidade histórica. Estou casado com Pinochet, e não é um matrimônio que me agrada. Eu preciso assumir que sua sombra é parte de minha vida. Gostaria que meu país se libertasse da sombra de Pinochet para que eu também pudesse ficar livre dele.


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