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ÓPERA/CRÍTICA
"El Niño" tenta recriar oratório
ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
"A vida é boa. Deus existe."
Esqueça, por um momento, que essas palavras vêm de um
poema de Rubén Darío (1867-1916). Será possível dar um sentido novo a palavras assim? Será
possível passar da ironia, sem
sentimentalismo, à crença religiosa? Essas perguntas servem como
ponto de partida para pensar sobre "El Niño", a nova ópera do
compositor americano John
Adams (1947), que teve sua estréia
mundial no dia 15 de dezembro,
seguida de mais cinco récitas no
teatro Châtelet em Paris.
Juntamente com Philip Glass e
Steve Reich, Adams forma um
triunvirato do minimalismo, ou
"música repetitiva". Relativamente menos conhecido que os
outros dois, ele talvez seja o mais
bem-sucedido. Sua ópera "Nixon
in China", que estreou em 1987,
numa montagem de Peter Sellars,
está entre as obras contemporâneas mais executadas pelo mundo afora; uma gravação em CD
(Nonesuch) recebeu o prêmio
Grammy dois anos depois.
Outro Grammy viria em 1998,
com a peça orquestral "El Dorado". Tanto na montagem de sua
outra ópera, "The Death of Klinghoffer" (A Morte de Klinghoffer)
-sobre um sequestrador palestino-, como no musical "I Was
Looking at the Ceiling and Then I
Saw the Sky" (Eu Estava Olhando
para o Teto e Então Vi o Céu) -já
apresentado mais de 50 vezes, nos
Estados Unidos e na Europa-,
Adams trabalhou em parceria
com Sellars, que assina também a
cenografia de "El Niño" e foi uma
espécie de conselheiro e co-libretista ao longo dos quase dois anos
de composição.
As ambições da dupla não são
pequenas. "El Niño" não é propriamente uma ópera: combinando música, poesia, filme e dança,
num contexto dramático-religioso, parece mais uma tentativa de
recriar, em novas bases, o gênero
do oratório (cujas obras-primas
canônicas são outras duas composições natalinas: o "Oratório de
Natal", de Bach, e o "Messias", de
Haendel). O cenário é mínimo:
um quadrado de luz ao fundo do
palco, que muda de cor de cena a
cena. Solistas e coro não chegam a
representar o texto; sua movimentação está mais próxima das
versões de concerto, só meio-encenadas, de ópera. Os gestos são
estilizados, no limite do jogral.
Movimento e trama ficam por
conta de três bailarinos, que circulam entre os cantores, ora como seus duplos, ora como um
contraponto ou comentário; e,
mais especialmente, do filme,
projetado do início ao fim das
duas horas e pouco de música,
numa grande tela que cobre a parte superior do palco. Filmado em
câmera digital, com imagens
cheias de grão, alterna cenas dos
bailarinos, transportados para os
desertos da Califórnia ou para
ambientes domésticos banais,
com uma quase-história de uma
quase-Maria hispânica, cercada
de policiais e junkies, adolescentes sem passado nem futuro, nos
vazios das praias de Los Angeles e
das pequenas cidades do interior
americano.
Que essa "Mary" seja uma "María" dá outro corpo, ainda, à seleção de poemas do libreto, que
combina passagens do Novo Testamento e dos Evangelhos Apócrifos com versos de Rubén Darío
e Vicente Huidobro (1893-1948) e
também, marcadamente, da poeta mexicana Sor Juana Inés de la
Cruz (1651-95), da chilena Gabriela Mistral (1889-1957) e da mexicana Rosario Castellanos (1925-74): mulheres para cantar a história de uma mulher, como explica
o compositor. "El Niño", aliás,
poderia se chamar "La Madre",
não fôra o trocadilho com o nome
do tufão, que aqui é também alegoria para o "Vento" do salvador.
A combinação de influências e a
aposta num repertório cristalizado de imagens (no filme, em particular) têm suas analogias musicais. Toda a arte de John Adams
se vale da amplificação e metamorfose de elementos conhecidos
da música dos séculos 19 e 20. Desenhos melódicos e sequências
harmônicas são esquadrinhados,
repartidos e esvaziados de seu significado original, nesse novo presente perpétuo da música repetitiva.
É justamente a condição de
temporalidade suspensa que torna essa música pouco adaptável
às convoluções de uma história,
como se dá tradicionalmente na
ópera. Cada uma das outras peças
cênicas de Adams teve de resolver
o dilema, de algum modo. O oratório, que é um gênero entre o recitado e o encenado, pareceria especialmente rico, agora, para tratar essa história da suspensão do
tempo por excelência, que é o nascimento de Jesus.
Somem-se a isso os talentos do
regente Kent Nagano e sua orquestra, a Sinfônica de Berlim; a
soprano Dawn Upshaw em grande forma e seus bons parceiros; e
uma grande produção, num
grande teatro, numa grande cidade, com repercussão internacional. Quer dizer: tinha tudo para
dar certo. Porque deu tão errado,
então, só pode ser motivo de tristeza e merece algum comentário.
Que há um descompasso entre
intenção e realização parece claro
e, em certa medida, era até programático. Numa entrevista incluída nas notas de programa,
Adams esclarece sua escolha dos
poemas em espanhol, como um
repertório que resgata os "estados
emocionais extremos", ausentes
dos textos bíblicos.
Mas esse comentário tem de ser
lido em contraponto a outras notas, para a estréia de "Naive and
Sentimental Music" (Música Ingênua e Sentimental), de 99: nos
termos da distinção romântica
entre "ingênuo" (espontâneo) e
"sentimental" (auto-consciente,
irônico), ele se descreve como
inevitavelmente "sentimental".
Vale dizer: mesmo os estados extremos, aqui, são vistos de fora. Só
a distância permite a intensidade.
Isso não explica o que é a frieza
de "El Niño", mas precisa ser levado em conta. Não existe teoria para o desacerto; mas haveria, sim,
uma teoria do acerto, se fosse o
caso. De modo análogo, a combinação de elementos, a parceria
com Sellars, a presença constante
do filme acima dos cantores, tudo
poderia ser justificado como uma
aposta audaciosa e capaz de abrir
caminhos. Se não chega a ser isso,
não é por falta de planejamento e
de coragem.
No fundo, a resposta talvez seja
simples. Assim como tudo poderia ter dado certo, não deu: inspiração não desce por encomenda,
e a competência, por si, não é o
bastante para sustentar uma obra
dessa envergadura.
Mas, enfim: "El Niño" veio à luz.
E talvez não seja justo, agora, cobrar desse oratório multimídia
tão mais do que ele pode dar. Não
é o Messias, nem o "Messias".
El Niño
Autor: John Adams
Cenografia e filme: Peter Sellars
Solistas: Dawn Upshaw, Lorraine Hunt
Lieberson, Willard White Theater of
Voices e London Voices Deutsches
Symphonie-Orchester Berlin
Regente: Kent Nagano
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