São Paulo, quarta-feira, 27 de dezembro de 2000

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ÓPERA/CRÍTICA


"El Niño" tenta recriar oratório



ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS



"A vida é boa. Deus existe." Esqueça, por um momento, que essas palavras vêm de um poema de Rubén Darío (1867-1916). Será possível dar um sentido novo a palavras assim? Será possível passar da ironia, sem sentimentalismo, à crença religiosa? Essas perguntas servem como ponto de partida para pensar sobre "El Niño", a nova ópera do compositor americano John Adams (1947), que teve sua estréia mundial no dia 15 de dezembro, seguida de mais cinco récitas no teatro Châtelet em Paris.
Juntamente com Philip Glass e Steve Reich, Adams forma um triunvirato do minimalismo, ou "música repetitiva". Relativamente menos conhecido que os outros dois, ele talvez seja o mais bem-sucedido. Sua ópera "Nixon in China", que estreou em 1987, numa montagem de Peter Sellars, está entre as obras contemporâneas mais executadas pelo mundo afora; uma gravação em CD (Nonesuch) recebeu o prêmio Grammy dois anos depois.
Outro Grammy viria em 1998, com a peça orquestral "El Dorado". Tanto na montagem de sua outra ópera, "The Death of Klinghoffer" (A Morte de Klinghoffer) -sobre um sequestrador palestino-, como no musical "I Was Looking at the Ceiling and Then I Saw the Sky" (Eu Estava Olhando para o Teto e Então Vi o Céu) -já apresentado mais de 50 vezes, nos Estados Unidos e na Europa-, Adams trabalhou em parceria com Sellars, que assina também a cenografia de "El Niño" e foi uma espécie de conselheiro e co-libretista ao longo dos quase dois anos de composição.
As ambições da dupla não são pequenas. "El Niño" não é propriamente uma ópera: combinando música, poesia, filme e dança, num contexto dramático-religioso, parece mais uma tentativa de recriar, em novas bases, o gênero do oratório (cujas obras-primas canônicas são outras duas composições natalinas: o "Oratório de Natal", de Bach, e o "Messias", de Haendel). O cenário é mínimo: um quadrado de luz ao fundo do palco, que muda de cor de cena a cena. Solistas e coro não chegam a representar o texto; sua movimentação está mais próxima das versões de concerto, só meio-encenadas, de ópera. Os gestos são estilizados, no limite do jogral.
Movimento e trama ficam por conta de três bailarinos, que circulam entre os cantores, ora como seus duplos, ora como um contraponto ou comentário; e, mais especialmente, do filme, projetado do início ao fim das duas horas e pouco de música, numa grande tela que cobre a parte superior do palco. Filmado em câmera digital, com imagens cheias de grão, alterna cenas dos bailarinos, transportados para os desertos da Califórnia ou para ambientes domésticos banais, com uma quase-história de uma quase-Maria hispânica, cercada de policiais e junkies, adolescentes sem passado nem futuro, nos vazios das praias de Los Angeles e das pequenas cidades do interior americano.
Que essa "Mary" seja uma "María" dá outro corpo, ainda, à seleção de poemas do libreto, que combina passagens do Novo Testamento e dos Evangelhos Apócrifos com versos de Rubén Darío e Vicente Huidobro (1893-1948) e também, marcadamente, da poeta mexicana Sor Juana Inés de la Cruz (1651-95), da chilena Gabriela Mistral (1889-1957) e da mexicana Rosario Castellanos (1925-74): mulheres para cantar a história de uma mulher, como explica o compositor. "El Niño", aliás, poderia se chamar "La Madre", não fôra o trocadilho com o nome do tufão, que aqui é também alegoria para o "Vento" do salvador.
A combinação de influências e a aposta num repertório cristalizado de imagens (no filme, em particular) têm suas analogias musicais. Toda a arte de John Adams se vale da amplificação e metamorfose de elementos conhecidos da música dos séculos 19 e 20. Desenhos melódicos e sequências harmônicas são esquadrinhados, repartidos e esvaziados de seu significado original, nesse novo presente perpétuo da música repetitiva.
É justamente a condição de temporalidade suspensa que torna essa música pouco adaptável às convoluções de uma história, como se dá tradicionalmente na ópera. Cada uma das outras peças cênicas de Adams teve de resolver o dilema, de algum modo. O oratório, que é um gênero entre o recitado e o encenado, pareceria especialmente rico, agora, para tratar essa história da suspensão do tempo por excelência, que é o nascimento de Jesus.
Somem-se a isso os talentos do regente Kent Nagano e sua orquestra, a Sinfônica de Berlim; a soprano Dawn Upshaw em grande forma e seus bons parceiros; e uma grande produção, num grande teatro, numa grande cidade, com repercussão internacional. Quer dizer: tinha tudo para dar certo. Porque deu tão errado, então, só pode ser motivo de tristeza e merece algum comentário.
Que há um descompasso entre intenção e realização parece claro e, em certa medida, era até programático. Numa entrevista incluída nas notas de programa, Adams esclarece sua escolha dos poemas em espanhol, como um repertório que resgata os "estados emocionais extremos", ausentes dos textos bíblicos.
Mas esse comentário tem de ser lido em contraponto a outras notas, para a estréia de "Naive and Sentimental Music" (Música Ingênua e Sentimental), de 99: nos termos da distinção romântica entre "ingênuo" (espontâneo) e "sentimental" (auto-consciente, irônico), ele se descreve como inevitavelmente "sentimental". Vale dizer: mesmo os estados extremos, aqui, são vistos de fora. Só a distância permite a intensidade.
Isso não explica o que é a frieza de "El Niño", mas precisa ser levado em conta. Não existe teoria para o desacerto; mas haveria, sim, uma teoria do acerto, se fosse o caso. De modo análogo, a combinação de elementos, a parceria com Sellars, a presença constante do filme acima dos cantores, tudo poderia ser justificado como uma aposta audaciosa e capaz de abrir caminhos. Se não chega a ser isso, não é por falta de planejamento e de coragem.
No fundo, a resposta talvez seja simples. Assim como tudo poderia ter dado certo, não deu: inspiração não desce por encomenda, e a competência, por si, não é o bastante para sustentar uma obra dessa envergadura.
Mas, enfim: "El Niño" veio à luz. E talvez não seja justo, agora, cobrar desse oratório multimídia tão mais do que ele pode dar. Não é o Messias, nem o "Messias".



El Niño
  
Autor: John Adams
Cenografia e filme: Peter Sellars Solistas: Dawn Upshaw, Lorraine Hunt Lieberson, Willard White Theater of Voices e London Voices Deutsches Symphonie-Orchester Berlin
Regente: Kent Nagano




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