São Paulo, quinta-feira, 27 de dezembro de 2001

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Safra 2001 nos EUA surpreende com filmes de arte e fiasco dos grandes lançamentos


Um ano muito esquisito

ANDRE OHEHIR
DA "SALON"

Os cinéfilos estão começando a perceber: 2001 foi um dos melhores anos para filmes estranhos.
Não me refiro a filmes que ofereçam uma fuga à realidade, mas aos que apresentam realidades realmente alucinatórias ou os que sugerem que nada poderia ser mais esquisito do que a realidade.
Hollywood teve um péssimo verão. A maior parte dos filmes de grande orçamento (exceção feita a "Shrek") teve ótimas estréias, mas afundou mais tarde. Nenhum desses é memorável ou representa bom cinema. Mas, enquanto observávamos a armação em torno de "Pearl Harbor" -e o delicioso fiasco que ela produziu-, nas margens do sistema, coisas animadoras ocorriam.
O que este ano e os últimos nos trouxeram é algo ainda mais surpreendente: uma nova era dourada dos filmes de arte.
Não se trata do cinema de arte à moda antiga, com sua oposição ideológica amargurada à estética e métodos de Hollywood. Como o caso de Steven Soderbergh demonstra, as fronteiras de Hollywood já não são mais as mesmas.
Depois do reaparecimento dos independentes em 99 e das pérolas estrangeiras de 2000, este ano provou-se um tesouro cinematográfico. A esquisitice voltou, em grau talvez superior a tudo o que se vê desde os 70. Talvez as novas tecnologias cinematográficas tenham algo a ver com a mudança. Talvez a falência intelectual, emocional e financeira de Hollywood tenha aberto as mentes de cineastas, distribuidores e espectadores de modo semelhante. Ou talvez seja uma daquelas inexplicáveis correntes culturais repentinas.
Abaixo, minha seleção do melhor ano para filmes esquisitos de que me lembro.

"Amnésia"
O "neonoir" cheio de truques não é dos meus gêneros favoritos, mas esse enigma é de primeira. A atuação de Guy Pearce parece oca e forçada, até você perceber que o protagonista sujeito a um tipo de amnésia é ele mesmo um ator. Que o roteirista e diretor Christopher Nolan monte a história com cada cena terminando onde a anterior começa é só um passo na cintilante construção do filme.

"Amores Brutos"
A espantosa estréia de Alejandro González Iñárritu combina a energia maldosa de Tarantino, o surrealismo vívido de Buñuel e os melodramas moralistas mexicanos em um panorama inesquecível da Cidade do México.

"Amor à Flor da Pele"
Tenho emoções contraditórias e intensas sobre Wong Kar-wai, o mais artístico dos grandes cineastas de Hong Kong. Mas não há como negar seu talento ou a singularidade de sua visão no luminoso drama de época "Amor à Flor da Pele", que finalmente lhe deu uma audiência maior no Ocidente.

"Sexy Beast"
O primeiro filme dramático de Jonathan Glazer resultou em um thriller de crime que tem aparência de MTV, soa como uma peça de Harold Pinter e revive o existencialismo nervoso dos melhores filmes britânicos dos anos 60.

"Ghost World"
"Ghost World", a estréia na ficção de Terry Zwigoff ("Crumb"), sobre os complicados tempos de faculdade na vida dos jovens, é mais uma sátira ao estilo alternativo e seu niilismo auto-engendrado do que à corrente dominante na vida norte-americana. Uma devastadora história de exílio cultural finamente detalhada e maravilhosamente interpretada.

"Os Outros"
Menos um trabalho de inovação que um projeto de restauração, "Os Outros", de Alejandro Amenábar, marca o retorno às mais finas tradições do cinema sobrenatural, em que os principais (e muitas vezes únicos) efeitos especiais estão no roteiro, nos personagens, na atmosfera e na edição.

"Mulholland Drive"
"Mulholland Drive" deixa claro que David Lynch retornou da quase irrelevância ao centro do mundo do cinema. Diferentemente do alucinatório "A Estrada Perdida" (97), em que perdeu a forma irrecuperavelmente, "Mulholland Drive" tem uma coerência temática e emocional inegável.


Tradução Paulo Migliacci



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