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CONTARDO CALLIGARIS
Balanços, casais e um propósito para o ano novo
"O que conseguimos neste
último ano? Quanto falta
para a meta? De quanto desviamos? Quais foram os erros? Era isso mesmo que a gente queria da
vida?" Os balanços prosperam no
fim de ano.
O problema é que, muitas vezes,
eles se apresentam como listas de
frustrações: algumas coisas não
deram certo, algo eludiu nossos
esforços, fracassamos. E qual é o
problema? Não seria bom dispor
do catálogo de nossos desacertos?
Afinal, com ele na mão, deveria
ser mais fácil inventar um futuro
que corrija o passado. Faz sentido. Mas não é bem isso o que
acontece: de regra, a lista das
frustrações transforma-se numa
cantilena não de emendas e projetos, mas de acusações. A coisa é
particularmente sensível quando
os membros de um casal fazem
seu balanço: nesse caso, as frustrações de um são sempre culpa
do outro.
"Não escrevi o grande romance
brasileiro deste século porque você não soube me proteger do choro das crianças." "Deixei de formar-me em biologia porque você
quis ter filhos logo." "Não fui para
a Antártida porque você se esqueceria de tomar seu remédio contra a pressão alta." O extraordinário é que, mesmo enunciadas
na frente de um terceiro, essas frases não suscitam o riso. Ao contrário, elas solidificam o ressentimento.
Recentemente, um homem de
meia-idade, bem casado, recitou,
em minha presença, o rosário de
seus fracassos. Era uma mistura
de algumas escolhas infelizes com
um pouco de azar e uma certa timidez em seguir seu desejo: os ingredientes banais de todas as vidas. Nada na lista colocava em
questão sua opção amorosa. Certo, casamento e família eram fatores que ele levava sempre em
conta em suas decisões. E isso foi
suficiente para que, em conclusão, ele evocasse assim sua relação conjugal: "Eu não estou dormindo com o inimigo, mas com
minha própria derrota".
Melanie Klein, uma das grandes figuras da psicanálise depois
de Freud, mostrou que cada um
pendura nas costas alheias alguns
elementos (mais ou menos incômodos) de sua própria personalidade. Pensamos lidar com os outros e com suas exigências, enquanto lidamos, de fato, com exigências que são nossas e que preferimos atribuir aos outros. No
caso: "Eu mesmo me impeço de
escrever o grande romance do século. Ao sentar de caneta ou mouse na mão, já tenho cãibras. Manifesto uma preferência resignada por meu sólido salário e não
estou nada a fim de pular no escuro, apostando na inspiração.
Mas não lido bem com essas inibições -ou covardias que sejam.
É mais prático acreditar que você,
minha mulher, me obrigou a vender meu "Aurélio" e meu notebook
para comprar fraldas descartáveis".
Também recentemente, outro
marido, mais jovem, tentava convencer-me da triste contabilidade
de seu casamento. Parecia-lhe
que a relação, os filhos e as responsabilidades constituíam uma
espécie de invalidez, limitando a
liberdade de seus movimentos.
No final das contas, a mulher erguia-se como o obstáculo mestre
entre ele e o mundo infinito dos
possíveis. "Tudo que não fui foi
por causa dela."
É óbvio que, a cada escolha, deixamos para trás um mundo de
possibilidades que não serão
mais: tomando qualquer caminho, renunciamos a todos os outros. Mas é curioso que, nessa matemática inevitável de escolhas e
perdas, logo os cônjuges se acusem reciprocamente com a maior
frequência. Aparentemente, o milagre de conseguir conviver, de inventar a cada dia compromissos
viáveis entre desejos diferentes
não vale nada. Na hora de fazer
as contas, só importa o sacrifício
imposto à liberdade absoluta e
triste que seria a nossa, se pudéssemos viver sem concessões ou seja, sem fazer caso de nenhum semelhante.
Na coluna das perdas, em suma, desfilam sempre as renúncias
exigidas pela presença de um parceiro (e, eventualmente, de filhos
e filhas). É verdade que essas exigências diminuem drasticamente
nossos futuros possíveis. Os sonhos, de repente, devem ser pensados a dois ou mais. Quer viajar?
As passagens são duas, quando
não são três ou quatro. Quer mudar para outro país ou outro Estado? E as crianças, que estão
acostumadas e felizes na escola? E
o emprego do parceiro? Quer sair
para jantar? E a pizza com a qual
o outro volta triunfalmente de seu
dia de trabalho?
Convenhamos: a série das perdas pode ser longa. Mas por que
será que, na coluna dos lucros,
nunca aparece o que ganhamos
na troca? Não penso nos benefícios imediatos de amizade, companhia etc. Mas nas próprias mudanças pelas quais passamos para e por conviver com os outros.
Por que não são nunca contadas
como aquisições?
Somos obcecados por um teimoso ideal de autonomia. Parecemos reconhecer como ganho só o
que corresponde a nossos anseios
de Robinson na ilha deserta.
Propósito para o ano novo: gostaria que não festejássemos apenas os êxitos de nossas aspirações
mais solitárias. E que conseguíssemos contar como lucros as mudanças que a convivência com os
outros nos impõe. Sejam eles próximos ou longínquos. Feliz Ano
Novo.
ccalligari@uol.com.br
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