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DANÇA/CRÍTICA
Cisne Negro encena paixão de memória e dança
INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA
Seja de sapatilhas de ponta, seja
de tênis de dança, os bailarinos da
Cia. Cisne Negro são um trunfo
da dança brasileira.
Dando início às comemorações
dos 25 anos da companhia, eles
apresentaram "Momentos Marcantes", sexta passada no Theatro
São Pedro. Organizado pela diretora e fundadora do Cisne Negro,
Hulda Bittencourt, o espetáculo
reúne quatro coreografias, compondo um panorama significativo não só do repertório do grupo,
mas de vertentes centrais da nossa dança nessas últimas duas décadas e meia.
Grande formadora de bailarinos e incentivadora da dança no
Brasil, Bittencourt ressalta a importância de se manter viva a memória da arte. Nada vem do nada;
mas entre nós, a julgar pelo apagamento quase imediato do passado, até parece que sim. Renovação é uma virtude; mas preservação também (como é óbvio na
música e no teatro, para citar duas
outras artes da performance, mas
talvez não seja óbvio ainda na
dança, em nosso país).
Um primeiro "momento marcante", então, é "Del Verde al
Amarillo", coreografia de 1979 de
Victor Navarro, com música de
Vivaldi. Sua dança incorpora ao
balé clássico posturas e gestos menos rígidos.
Navarro busca sentimento no
movimento. Para isso, utiliza uma
dramaticidade que, hoje, pode até
parecer exagerada. Mas na sua
dança o que mais conta está para
além da estrutura (que nem por
isso deixa de ser arrojada).
Vários bailarinos se desprendem do grupo, fazendo solos.
Seus movimentos são muitas vezes os mesmos, em tempos musicais diferentes. E o grupo? Muito
harmônico, apesar dos pequenos
deslizes. Um grande momento foi
o duo de Liris do Lago com Leonardo Hoehne: precisão e densidade de gestos refinando a coreografia.
"Sabiá", coreografia do português Vasco Wellenkamp, de 1988,
com música de Tom Jobim e Chico Buarque de Holanda, a essa altura já ganhou estatuto de clássico
da dança. Quer dizer: não envelhece nada e só ganha novas qualidades com bons intérpretes.
Dançado por Patrícia Alquezar
e Vladimir Condereche, foi um
prazer de se ver. Movimentos começam e acabam sem limite marcado, numa série de gestos fluidos. Alquezar é segura sobre as
pontas, dançando com acentos
expressivos e sentido preciso de
tempo; e Condereche é um grande "partner", atento às mínimas
dificuldades. Um "pas-de-deux"
exuberante, memorável conversa
a dois entre intérpretes maduros.
Final feliz
"Gadget", também de Navarro
(1980), com música do compositor contemporâneo polonês
Krzysztof Penderecki, tem uma
narrativa clara: a história de dois
bonecos que se adoram, mas estão sempre brigando.
Numa das desavenças, um deles
quase morre -até que se chega
ao final feliz. Com acentos de humor, a coreografia soa também
algo datada; mas a qualidade do
movimento é o bastante para sustentar a atmosfera do balé. O vocabulário clássico se deixa quebrar por gestos angulares, característicos dos bonecos. Aqui se revela a maturidade dos bailarinos,
capazes de mover cada parte do
corpo com abandono, entregues à
gravidade, só para retomar depois
o controle muscular total e dar
um passo difícil.
Também "Impromptu", de
Tíndaro Silvano, com música de
Egberto Gismonti, tem acentos de
humor, que se fazem notar desde
a postura corporal dos bailarinos.
Segundo Silvano, que criou a coreografia para o Cisne Negro em
1997, eles tentaram "não se deixar
levar pelos impulsos iniciais provocados por esses ritmos tão conhecidos".
Em vez da manemolência e dos
movimentos de quadris, investiram num ritmo quase urbano,
acelerado em movimentos sequenciais, que vão se repetindo ao
longo da peça.
A escolha de um repertório variado é uma das marcas do Cisne
Negro. O risco que se corre é
grande, mas valioso: inventar novos caminhos, sem varrer o passado. O Cisne Negro não apenas sobreviveu às dificuldades de uma
companhia de dança no Brasil
-o que já seria uma façanha-
mas nos deu e nos dá uma lição
fundamental. Com acento próprio, e senso assumido de urgência, essa companhia encena, em
plena terra do esquecimento, a
paixão perene entre a memória e
a história da dança.
Avaliação:
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