São Paulo, segunda-feira, 28 de janeiro de 2002

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DANÇA/CRÍTICA

Cisne Negro encena paixão de memória e dança

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

Seja de sapatilhas de ponta, seja de tênis de dança, os bailarinos da Cia. Cisne Negro são um trunfo da dança brasileira.
Dando início às comemorações dos 25 anos da companhia, eles apresentaram "Momentos Marcantes", sexta passada no Theatro São Pedro. Organizado pela diretora e fundadora do Cisne Negro, Hulda Bittencourt, o espetáculo reúne quatro coreografias, compondo um panorama significativo não só do repertório do grupo, mas de vertentes centrais da nossa dança nessas últimas duas décadas e meia.
Grande formadora de bailarinos e incentivadora da dança no Brasil, Bittencourt ressalta a importância de se manter viva a memória da arte. Nada vem do nada; mas entre nós, a julgar pelo apagamento quase imediato do passado, até parece que sim. Renovação é uma virtude; mas preservação também (como é óbvio na música e no teatro, para citar duas outras artes da performance, mas talvez não seja óbvio ainda na dança, em nosso país).
Um primeiro "momento marcante", então, é "Del Verde al Amarillo", coreografia de 1979 de Victor Navarro, com música de Vivaldi. Sua dança incorpora ao balé clássico posturas e gestos menos rígidos.
Navarro busca sentimento no movimento. Para isso, utiliza uma dramaticidade que, hoje, pode até parecer exagerada. Mas na sua dança o que mais conta está para além da estrutura (que nem por isso deixa de ser arrojada).
Vários bailarinos se desprendem do grupo, fazendo solos. Seus movimentos são muitas vezes os mesmos, em tempos musicais diferentes. E o grupo? Muito harmônico, apesar dos pequenos deslizes. Um grande momento foi o duo de Liris do Lago com Leonardo Hoehne: precisão e densidade de gestos refinando a coreografia.
"Sabiá", coreografia do português Vasco Wellenkamp, de 1988, com música de Tom Jobim e Chico Buarque de Holanda, a essa altura já ganhou estatuto de clássico da dança. Quer dizer: não envelhece nada e só ganha novas qualidades com bons intérpretes.
Dançado por Patrícia Alquezar e Vladimir Condereche, foi um prazer de se ver. Movimentos começam e acabam sem limite marcado, numa série de gestos fluidos. Alquezar é segura sobre as pontas, dançando com acentos expressivos e sentido preciso de tempo; e Condereche é um grande "partner", atento às mínimas dificuldades. Um "pas-de-deux" exuberante, memorável conversa a dois entre intérpretes maduros.

Final feliz
"Gadget", também de Navarro (1980), com música do compositor contemporâneo polonês Krzysztof Penderecki, tem uma narrativa clara: a história de dois bonecos que se adoram, mas estão sempre brigando.
Numa das desavenças, um deles quase morre -até que se chega ao final feliz. Com acentos de humor, a coreografia soa também algo datada; mas a qualidade do movimento é o bastante para sustentar a atmosfera do balé. O vocabulário clássico se deixa quebrar por gestos angulares, característicos dos bonecos. Aqui se revela a maturidade dos bailarinos, capazes de mover cada parte do corpo com abandono, entregues à gravidade, só para retomar depois o controle muscular total e dar um passo difícil.
Também "Impromptu", de Tíndaro Silvano, com música de Egberto Gismonti, tem acentos de humor, que se fazem notar desde a postura corporal dos bailarinos. Segundo Silvano, que criou a coreografia para o Cisne Negro em 1997, eles tentaram "não se deixar levar pelos impulsos iniciais provocados por esses ritmos tão conhecidos".
Em vez da manemolência e dos movimentos de quadris, investiram num ritmo quase urbano, acelerado em movimentos sequenciais, que vão se repetindo ao longo da peça.
A escolha de um repertório variado é uma das marcas do Cisne Negro. O risco que se corre é grande, mas valioso: inventar novos caminhos, sem varrer o passado. O Cisne Negro não apenas sobreviveu às dificuldades de uma companhia de dança no Brasil -o que já seria uma façanha- mas nos deu e nos dá uma lição fundamental. Com acento próprio, e senso assumido de urgência, essa companhia encena, em plena terra do esquecimento, a paixão perene entre a memória e a história da dança.


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