São Paulo, quarta-feira, 28 de janeiro de 2004

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MARCELO COELHO

Dentro da mente do líder

Pelo que sei, a "Harvard Business Review" é das mais respeitadas publicações de administração em todo o mundo. Imagino que o bom executivo deva tê-la sempre em mãos -ou pelo menos carregá-la na pastinha. Para minha surpresa, existe uma versão brasileira da revista. Topei com um exemplar da edição deste mês. Seu tema é "a mente do líder".
Um dos pontos altos desse número é uma entrevista com o psicanalista Manfred Kets de Vries. Ele atende num belo consultório em Paris, além de ser "professor of Leadership Development" na cidade histórica de Fontainebleau.
O trabalho desse terapeuta, diz a revista, "o aproximou de muitas das melhores corporações do mundo". Concluo que muitos executivos de multinacionais já visitaram o seu divã. Será isso? O texto se vale de uma formulação mais cuidadosa: "Executivos de empresas como Heineken, BP e Nokia recorreram a seu know-how".
O que observa o psicanalista? Que muitos líderes não têm inteligência emocional. Falta-lhes capacidade de auto-reflexão, e nisso a psicanálise pode ser de grande ajuda. Mas atenção! Se você não se dispõe a ouvir os outros, a mudar de idéia, a reconhecer os próprios erros etc., isso não o impedirá -a revista tem um espírito bastante otimista- de chegar ao topo. Ao longo dos anos, diz Kets de Vries, "conheci executivos de grande sucesso e nada auto-reflexivos. Eram realizadores por excelência".
De todo modo, há outros motivos para que um executivo faça análise.
Para De Vries, a verdadeira liderança tem seus aspectos obscuros. Poucos executivos percebem que "na verdade, o comportamento irracional é comum na vida organizacional". O psicanalista afirma que a saúde mental de um alto executivo é assunto mais sutil, mais complicado "do que a de um interno em hospital psiquiátrico". Afinal, "ele não pode ser louco demais, do contrário não conseguiria chegar à cúpula, mas é alguém extremamente impetuoso".
Executivos também sofrem de feridas no ego; procuram compensar a descrença e o desprezo que tiveram na infância cercando-se de "um público que o admire". Correm o risco, assim, de não ter muita autocrítica. Qual a solução para isso?
Ter um bobo da corte, sugere o especialista. Assim como os reis, os executivos precisam de alguém capaz de dizer-lhes a verdade, ainda que em tom de brincadeira. Caso contrário, perdem a visão das coisas em meio aos bajuladores.
Claro que ele não usa a palavra "bajuladores" -tampouco a palavra "chefes". Não há "chefes". Há líderes. E não há bajuladores: há um "público" de colaboradores. Não há nem mesmo psicanalistas e psiquiatras. Por que um líder haveria de procurá-los? O psicanalista e consultor organizacional Kenneth Eisold, em outro artigo, diz que nenhum executivo aceitará se lhe disserem que precisa de terapia. Melhor dizer sempre "você precisa conversar com fulano". Ele conclui: "Os executivos têm "coaches", e não psiquiatras". Soa melhor. Já outro colaborador, que é psiquiatra, afirma que no mundo das boas empresas não há medo do termo: "Em vez de estimular o uso de coaches para executivos, algumas incentivam a alta gerência para buscar assistência psiquiátrica".
Será mesmo necessário? Claro que todo profissional sofre de stress, de insegurança, de algum tipo de desequilíbrio afetivo, e que qualquer um de nós ganhará bastante se dedicar um tempo a explorar sua própria psique. Mas a questão aqui é outra. Não se trata de fazer com que a pessoa tenha uma vida mais feliz, mas que obtenha promoção e poder na empresa.
Curioso que questões como culpa e indecisão não tenham lugar nesses consultórios e instâncias de aconselhamento. É que a mente do líder, por definição, é bem focalizada, objetiva, não hesita jamais em tomar "decisões duras".
Outro artigo da revista, assinado por Bárbara Kellerman, fala com franqueza: chega de pensar que os líderes são necessariamente éticos e admiráveis. "É impossível negar que gente má, ou no mínimo indigna, ocupa com freqüência altas posições", diz a analista.
Ela dá exemplos ousados. "Certos líderes conseguem grandes feitos ao capitalizar justamente o lado sombrio de sua alma. Richard Nixon (...) foi capaz de iniciar relações diplomáticas com a China ao capitalizar sua famosa paranóia." Um passo a mais e chegamos à seguinte frase: "Até mesmo um monstro pode dar lições de liderança. Hitler, por exemplo, foi um mestre na manipulação de informações".
Se a idéia da autora do artigo era ser franca e direta, acho que ela conseguiu, e merece ter grande êxito em sua carreira. A revista chega com isso a seu ponto culminante. Creio que a estratégia de toda a conversa sobre liderança se resume ao seguinte: num primeiro momento, tratava-se de inventar um eufemismo. A prática real do comando -freqüentemente opressiva, arbitrária etc.- ganha o carismático nome de "liderança".
O problema é que o eufemismo era bonito demais; poucos chefes se viram espelhados em tão oleosa papagaiada. Cumpre, então, ser um pouco mais realista e redirecionar o conceito para quem o consome. A revista passa a dizer a verdade, mas como se continuasse num conto de fadas. Você é irracional, desequilibrado, tirânico, talvez louco e sanguinário como Hitler? Merece nosso respeito. Você tem grandes chances de se tornar um líder. Se ainda não é, procure um de nossos especialistas.

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