São Paulo, sexta-feira, 28 de janeiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"NOSSA MÚSICA"

Godard filma o inferno e o paraíso da história

Divulgação
A atriz Sarah Adler em cena do filme "Nossa Música", do diretor francês Jean-Luc Godard, que estréia hoje nos cinemas de São Paulo


ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE DOMINGO

"Nossa Música", de Jean-Luc Godard, é um ensaio cinematográfico de grande força e atualidade, dividido em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. A divisão parece pretensiosa, e talvez seja, mas ajuda bastante o diretor e o espectador a organizarem as imagens e idéias sobre a irracionalidade das guerras, a aceitação do outro, o perdão e a reconstrução do mundo e da vida.
O Inferno é uma rapidíssima introdução em que Godard apresenta de modo frenético uma colagem de imagens das guerras que acometeram o século 20. Dura cerca de dez minutos, mas sintetiza com clareza como somos capazes de transformar nosso mundo no pior de todos os mundos.
O Purgatório passa-se em Sarajevo, em 2003, durante os Encontros Europeus do Livro. Nesse capítulo, documentário e ficção se misturam, e personalidades como os escritores Juan Goytisolo (espanhol), Mahmoud Darwish (palestino) e até o próprio diretor transformam-se em personagens.
A escolha de Sarajevo não é gratuita. A cidade tem papel importante no início e no desenlace da história européia no século 20. É considerada como o local onde começou a Primeira Guerra (1914-1918). E, quando Godard filma ali, ainda está sendo reconstruída dos desastres da Guerra da Bósnia (1992-95), o último grande conflito da Europa no século.
Entre as ruínas de Sarajevo e os corredores do Centro André Malraux, os personagens discutem sobre os conflitos no Oriente Médio, o poder americano, o destino da Europa, a função da arte. Godard exibe essas discussões em entrevistas curtas, diálogos, declarações aforismáticas e cenas muitas vezes absurdas, enquanto acompanha a enquete de sua heroína, uma jornalista franco-judia, angustiada com o conflito entre Israel e Palestina.
No labirinto polifônico de Godard, o pior espectador é aquele que tenta achar uma história, um sentido, uma verdade, uma saída. As imagens não buscam o uno, mas o diverso, o conflito, o múltiplo. Elas são abertas, são um todo aberto. "Nossa Música" é um rico e complexo conjunto visual e sonoro orientado filosoficamente para a compreensão da guerra e para a formulação de uma ética da convivência humana.
Esta ética, que evoca Rimbaud e Cristo, é inspirada pela idéia de abertura existencial ao outro ("Eu é um outro" é a frase de Rimbaud) e de perdão ativo (o pai-nosso é citado no filme). Godard está aqui inspirado pela ética cristã do perdão, mas numa perspectiva política. Alguns reconhecerão as idéias dos filósofos Lévinas e Derrida.
Por fim, chegamos ao Paraíso. A jornalista agora caminha por um campo tranqüilo em que cruza com jovens que lêem, comem, passeiam, se distraem infinitamente. É uma vida pacificada, artística, ociosa, parece que os conflitos acabaram e a história também. Godard, porém, prepara ainda um desfecho extraordinário e irônico. Não contarei qual é para não diminuir a surpresa e a força das últimas imagens de "Nossa Música", que desfazem a ilusão no fim da história, questionam o futuro da União Européia e da globalização e convidam novamente à ação política.


Nossa Música
Notre Musique
    
Direção: Jean-Luc Godard
Produção: França/Suíça, 2004
Com: Sarah Adler, Jean-Luc Godard
Quando: a partir de hoje no Cinesesc e no HSBC Belas Artes


Texto Anterior: Crítica: Seqüência explora o abismo entre as famílias
Próximo Texto: Minas vê ode à natureza de Sergio Rezende
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.