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"NOSSA MÚSICA"
Godard filma o inferno e o paraíso da história
Divulgação
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A atriz Sarah Adler em cena do filme "Nossa Música", do diretor francês Jean-Luc Godard, que estréia hoje nos cinemas de São Paulo |
ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE DOMINGO
"Nossa Música", de Jean-Luc Godard, é um ensaio
cinematográfico de grande força e
atualidade, dividido em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso.
A divisão parece pretensiosa, e
talvez seja, mas ajuda bastante o
diretor e o espectador a organizarem as imagens e idéias sobre a irracionalidade das guerras, a aceitação do outro, o perdão e a reconstrução do mundo e da vida.
O Inferno é uma rapidíssima introdução em que Godard apresenta de modo frenético uma colagem de imagens das guerras que
acometeram o século 20. Dura
cerca de dez minutos, mas sintetiza com clareza como somos capazes de transformar nosso mundo
no pior de todos os mundos.
O Purgatório passa-se em Sarajevo, em 2003, durante os Encontros Europeus do Livro. Nesse capítulo, documentário e ficção se
misturam, e personalidades como
os escritores Juan Goytisolo (espanhol), Mahmoud Darwish (palestino) e até o próprio diretor
transformam-se em personagens.
A escolha de Sarajevo não é gratuita. A cidade tem papel importante no início e no desenlace da
história européia no século 20. É
considerada como o local onde
começou a Primeira Guerra
(1914-1918). E, quando Godard filma ali, ainda está sendo reconstruída dos desastres da Guerra da
Bósnia (1992-95), o último grande
conflito da Europa no século.
Entre as ruínas de Sarajevo e os
corredores do Centro André Malraux, os personagens discutem
sobre os conflitos no Oriente Médio, o poder americano, o destino
da Europa, a função da arte. Godard exibe essas discussões em
entrevistas curtas, diálogos, declarações aforismáticas e cenas
muitas vezes absurdas, enquanto
acompanha a enquete de sua heroína, uma jornalista franco-judia, angustiada com o conflito entre Israel e Palestina.
No labirinto polifônico de Godard, o pior espectador é aquele
que tenta achar uma história, um
sentido, uma verdade, uma saída.
As imagens não buscam o uno,
mas o diverso, o conflito, o múltiplo. Elas são abertas, são um todo
aberto. "Nossa Música" é um rico
e complexo conjunto visual e sonoro orientado filosoficamente
para a compreensão da guerra e
para a formulação de uma ética da
convivência humana.
Esta ética, que evoca Rimbaud e
Cristo, é inspirada pela idéia de
abertura existencial ao outro ("Eu
é um outro" é a frase de Rimbaud)
e de perdão ativo (o pai-nosso é
citado no filme). Godard está aqui
inspirado pela ética cristã do perdão, mas numa perspectiva política. Alguns reconhecerão as idéias
dos filósofos Lévinas e Derrida.
Por fim, chegamos ao Paraíso. A
jornalista agora caminha por um
campo tranqüilo em que cruza
com jovens que lêem, comem,
passeiam, se distraem infinitamente. É uma vida pacificada, artística, ociosa, parece que os conflitos acabaram e a história também. Godard, porém, prepara
ainda um desfecho extraordinário e irônico. Não contarei qual é
para não diminuir a surpresa e a
força das últimas imagens de
"Nossa Música", que desfazem a
ilusão no fim da história, questionam o futuro da União Européia e
da globalização e convidam novamente à ação política.
Nossa Música
Notre Musique
Direção: Jean-Luc Godard
Produção: França/Suíça, 2004
Com: Sarah Adler, Jean-Luc Godard
Quando: a partir de hoje no Cinesesc e
no HSBC Belas Artes
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