São Paulo, segunda-feira, 28 de fevereiro de 2000


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"Caso Raul" pressiona indústria fonográfica


Folha Imagem
Raul Seixas (1945-89) de meia furada, em 73, quando recém-contratado da Philips (hoje Universal)



Sentença abre precedentes ao condenar gravadora a pagar no mínimo R$ 240 mil a herdeiras do roqueiro
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Essas coisas não acontecem todo dia no Brasil, e se pode estar abrindo um precedente inédito nas relações entre artistas e indústria fonográfica locais. As três herdeiras de Raul Seixas (1945-89) obtiveram na semana passada, em sentença judicial de primeira instância, vitória sobre a gravadora Universal, que acusam de praticar irregularidades com a obra do roqueiro por três décadas.
De seis itens postulados pelas filhas de Raul -Vivian, Scarlet e Simone-, três foram acolhidos pela juíza Teresa de Andrade Castro Neves Nogueira, da 17ª Vara Cível do Rio de Janeiro. Ambas as partes prometem recorrer.
Mas, mantida a decisão como está, a Universal (ex-Philips) está condenada a pagar um valor que vai de R$ 400 mil, segundo avaliação do presidente da gravadora, Marcelo Castelo Branco, a R$ 1 milhão, segundo o advogado das herdeiras, Nehemias Gueiros Jr.
A Universal, embora em nota oficial repudie o valor citado por Gueiros Jr. ("não passa de uma especulação irresponsável, visando apenas obter espaço na imprensa"), coloca panos quentes:
"Vamos recorrer de todos os itens, mas o que a Justiça determinar será honrado pela gravadora, e isso em nada vai afetar a relação da companhia com a obra dele. Raul será sempre contemplado, porque é bom vendedor", afirma Castelo Branco à Folha.

Disco "pirata"
A primeira contenda vencida pelo espólio de Raul diz respeito a "Eu, Raul Seixas", gravado precariamente pelo fã-clube do artista e lançado em 89 -sem autorização, segundo as herdeiras, que acusam o disco de ter "péssima qualidade sonora" e, por isso, ser lesivo à imagem do autor.
A gravadora diz que obteve autorização do fã-clube, mas as herdeiras contra-argumentam que ninguém além delas detém propriedade sobre a obra de Raul -o fã-clube não poderia, portanto, autorizar. Na nota oficial, a gravadora tenta camuflar o montante da indenização, afirmando que é de R$ 80 mil. Não é verdade. A condenação é de R$ 80 mil por herdeira -no total, R$ 240 mil.
Em entrevista à Folha, Castelo Branco admitiu os R$ 240 mil: "É R$ 80 mil por herdeira. Vamos recorrer porque o pedido na ação era de R$ 40 mil para cada".

Vinil versus CD
O segundo ponto vencido diz respeito a pagamentos de direitos autorais de CDs vendidos pela gravadora com base em preços dos praticamente extintos discos de vinil. Os produtos lançados pela gravadora de 90 em diante terão de ser auditados para a verificação de diferenças de royalties cobrados com base em vinil, bem mais barato que CD.
"Essa é uma prática generalizada na indústria. Só começaram a corrigir depois que a ação de Raul Seixas começou, em 95", afirma o advogado Gueiros Jr. "Vamos recorrer, porque pedimos a correção de toda a obra relançada pela gravadora, e não só das coletâneas editadas nos anos 90."

Escalonamento
O último item acatado é o de que, segundo contratos assinados por Raul, ele receberia direitos autorais escalonados -8% para título que vendesse até 50 mil cópias, 9% entre 50 mil e 100 mil e 10% de 100 mil em diante. As herdeiras afirmam que o escalonamento não foi cumprido.
"Raul é um bom vendedor, mas nem todos os discos venderam bem, principalmente na data de saída. Os valores não devem passar de R$ 30 mil ou R$ 40 mil", minimiza Castelo Branco. Auditorias irão determinar a conta total devida às herdeiras.
A lógica não o favorece, entretanto. Saíram pela ex-Philips os quatro álbuns mais bem-sucedidos de Raul, "Krig-Ha, Bandolo!" (73), "Gita" (74), "Novo Aeon" (75) e "Há 10 Mil Anos Atrás" (76). Todos seguramente ultrapassaram há muito a marca de 100 mil exemplares vendidos, e a sentença, nesse ponto, obriga a revisão desde o primeiro contrato de Raul com a empresa.
Traindo o desinteresse artístico que vem dominando as gravadoras, a nota oficial distribuída pela Universal escorrega no conhecimento da obra de seu ex-sucesso.
Afirma que ele ficou na companhia até 79 -ora, em 77 Raul já lançava seus discos pela WEA. E diz que "se orgulha de ter sido a gravadora responsável pela primeira contratação artística de Raul Seixas", em 72 -não, ele lançou, em 68, pela Odeon (hoje EMI), seu LP de estréia, "Raulzito e Seus Panteras". Depois, foi produtor contratado da CBS (hoje Sony), pela qual lançou, com Sérgio Sampaio, Edy Star e Miriam Batucada, "Sessão das Dez" (71).

Precedentes
A vitória das herdeiras de Raul foi parcial. Reclamações não acatadas pela sentença dizem respeito à obrigação de desconto perpétuo de um percentual pelo custo de confecção da capa dos discos, ao pagamento de direitos autorais sobre 90% do preço final dos discos -em vez de 100%- e à entrega às herdeiras dos discos de ouro e platina ganhos pelo artista.
Mas o caso Raul, ainda em processo, vem se associar a outros recentes no que pode ser o início de uma transformação que vai tornar a relação com a indústria mais aprazível para artistas assalariados.
É assim que, desde novembro, Lobão vem obtendo sucesso considerável com "A Vida É Doce". CD independente, lançado em bancas de jornal sem qualquer respaldo do sistema fonográfico, se aproxima de 50 mil cópias vendidas e já parte para a segunda tiragem.
"Espero que a classe artística desencabule de vez e corra atrás do seu prejuízo", decreta Lobão, curto e grosso.
De forma análoga, artistas hoje fora da grande indústria, como Geraldo Azevedo, Baby do Brasil, Blitz e Léo Jaime, se uniram em torno do novo selo Panela Music, que vem distribuindo discos também em bancas de jornal.
Por fim, a mainstream Marisa Monte tem em seu poder a master (por regra, os originais de todos os produtos são propriedade das grandes companhias) de "Tudo Azul", da Velha-Guarda da Portela, com que inaugurou seu próprio selo, Phonomotor.
Marisa diz que lançará seus próprios CDs também pelo selo, embora continue atrelada à multinacional EMI -não é a nova relação, ainda, mas já se aponta para uma nova direção.
Falta somar a tudo isso a intervenção cada vez mais forte da Internet na produção de música, via MP3 e outros dribles na aturdida indústria fonográfica. Um admirável mundo novo, ainda desconhecido, bate à porta.




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