|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ERUDITO
Scholl e a música por trás da música por trás da música
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Por trás de toda canção existe outra canção; e por trás de
cada outra existe outra; e assim
por diante, até a fonte ideal para
onde convergem todas as memórias.
É lá que se escuta a mais natural
de todas as músicas, incontestável
e enigmática, como uma pedra ou
uma fruta. Folclore é o nome mais
comum para essa arte sem autor e
sem data, que se renova inesperadamente nesse disco do contratenor Andreas Scholl.
A música "folclórica" é definida
nos dicionários como "produto
de uma tradição que evolui por
transmissão oral". Quer dizer:
sem partitura. O que caracteriza o
folclore é a recriação constante da
música por uma comunidade.
Cadeia sem fim
Desse ponto de vista, o disco de
Andreas Scholl ("Wayfaring
Stranger - Folksongs", da gravadora Decca) insere-se numa cadeia sem fim de interpretações.
Mesmo os arranjos de Craig Leon,
compostos para a Orpheus
Chamber Orchestra (mais harpa e
alaúde, ou saltério, ou banjo), não
são menos folclóricos do que
qualquer outro.
E a voz do contratenor reinventa para si o sentido perenemente
cifrável desse repertório.
Um contratenor, diga-se de passagem, não é contra ninguém,
nem canta com a voz ao contrário. Contratenor é um contralto
masculino: um baixo ou barítono
cantando no falsete, só que um
falsete forte. (Como Milton Nascimento cantando aquelas notas
muito agudas.)
Em nossos dias musicologicamente corretos, o contratenor se
tornou figura habitual no domínio da música antiga.
Mas nada é habitual com Scholl,
que gravou quatro discos perfeitos de música barroca desde 98
-"Heroes" (Haendel e outros
compositores), "A Musical Banquet" (Dowland), "Nise Dominus" (Vivaldi) e "Stabat Mater"
(Pergolesi)- com grande sucesso e sem se render nunca ao fácil.
Também não se rende agora: há
tenores que gravam música natalina e "Il Sole Mio" para se popularizarem; "contra" esses, Scholl
grava uma canção inglesa de 1430
ou uma balada setecentista. É a
ironia da ironia, a música "folclórica" ("do povo") como alternativa popular à "popular" (que não
vem do povo).
Sua voz não tem explicação.
Nem uma canção como "I Will
Give My Love an Apple", circulando nos países de língua inglesa
desde o século 15. Ninguém resiste aos agudos de Scholl, apoiados
em acentos da fala: "I will give my
love an apple without it a core"
("Para o meu amor darei uma
maçã sem centro")/ "I will give
my love a house without it a door"
("Para o meu amor darei uma casa sem porta"). A sintaxe antiga
parece natural, porque o segundo
"it" é a nota mais alta, e Scholl
canta tudo em tons de entrega,
não de charada. A segunda metade da estrofe arremata melodia e
verso: "Para o meu amor darei
um palácio onde morar/ E não é
preciso chave para entrar" ainda
mais que a melodia desarma qualquer reticência, das alturas de um
ré agudíssimo e longo.
Que canção incrível: "Minha cabeça é a maçã sem centro/ Minha
mente, a casa sem porta. Meu coração é o palácio onde morar..."
Abre-se para ela sem chave, como
se abrem as memórias da música
antiga mais antiga de todas, e a
mais moderna também.
Outras canções: "The Salley
Gardens", favorita do escritor James Joyce; "I Am a Poor Wayfaring Stranger", reeditando o
"Êxodo" com fervores gentis do
século 19; "Barbara Allen", mencionada no "Diário" de Samuel
Pepys, em 1655; "Henry Martin",
balada em que Scholl pode mostrar sua voz de barítono, alternada teatralmente com a de contratenor; e outras 12 músicas que
nunca se ouviu e sempre se conheceu.
Nunca é exagero. "Black Is the
Color", por exemplo, está entre as
"Folksongs" recriadas pelo compositor contemporâneo Luciano
Berio (em 1964).
Livra-se aqui de tudo o que não
é essencial. Encerra o disco em
suspenso, justamente na palavra
"stands" ("fica"). Sozinha, sem
acompanhamento neste último
compasso, a voz mal se deixa perceber na despedida do "s".
Atrás dessa música existe uma
outra música. É lá que se está.
Wayfaring Stranger - Folksongs
Artista: Andreas Scholl e Orpheus
Chamber Orchestra
Lançamento: Decca
(www.decca.com)
Quanto: R$ 50, em média
Texto Anterior: Rita Lee: Mééé Próximo Texto: Gastronomia - África do Sul: Cozinha negra se esconde no ar europeu do país Índice
|