São Paulo, quinta-feira, 28 de fevereiro de 2002

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ERUDITO

Scholl e a música por trás da música por trás da música

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Por trás de toda canção existe outra canção; e por trás de cada outra existe outra; e assim por diante, até a fonte ideal para onde convergem todas as memórias.
É lá que se escuta a mais natural de todas as músicas, incontestável e enigmática, como uma pedra ou uma fruta. Folclore é o nome mais comum para essa arte sem autor e sem data, que se renova inesperadamente nesse disco do contratenor Andreas Scholl.
A música "folclórica" é definida nos dicionários como "produto de uma tradição que evolui por transmissão oral". Quer dizer: sem partitura. O que caracteriza o folclore é a recriação constante da música por uma comunidade.

Cadeia sem fim
Desse ponto de vista, o disco de Andreas Scholl ("Wayfaring Stranger - Folksongs", da gravadora Decca) insere-se numa cadeia sem fim de interpretações. Mesmo os arranjos de Craig Leon, compostos para a Orpheus Chamber Orchestra (mais harpa e alaúde, ou saltério, ou banjo), não são menos folclóricos do que qualquer outro.
E a voz do contratenor reinventa para si o sentido perenemente cifrável desse repertório.
Um contratenor, diga-se de passagem, não é contra ninguém, nem canta com a voz ao contrário. Contratenor é um contralto masculino: um baixo ou barítono cantando no falsete, só que um falsete forte. (Como Milton Nascimento cantando aquelas notas muito agudas.)
Em nossos dias musicologicamente corretos, o contratenor se tornou figura habitual no domínio da música antiga.
Mas nada é habitual com Scholl, que gravou quatro discos perfeitos de música barroca desde 98 -"Heroes" (Haendel e outros compositores), "A Musical Banquet" (Dowland), "Nise Dominus" (Vivaldi) e "Stabat Mater" (Pergolesi)- com grande sucesso e sem se render nunca ao fácil.
Também não se rende agora: há tenores que gravam música natalina e "Il Sole Mio" para se popularizarem; "contra" esses, Scholl grava uma canção inglesa de 1430 ou uma balada setecentista. É a ironia da ironia, a música "folclórica" ("do povo") como alternativa popular à "popular" (que não vem do povo).
Sua voz não tem explicação. Nem uma canção como "I Will Give My Love an Apple", circulando nos países de língua inglesa desde o século 15. Ninguém resiste aos agudos de Scholl, apoiados em acentos da fala: "I will give my love an apple without it a core" ("Para o meu amor darei uma maçã sem centro")/ "I will give my love a house without it a door" ("Para o meu amor darei uma casa sem porta"). A sintaxe antiga parece natural, porque o segundo "it" é a nota mais alta, e Scholl canta tudo em tons de entrega, não de charada. A segunda metade da estrofe arremata melodia e verso: "Para o meu amor darei um palácio onde morar/ E não é preciso chave para entrar" ainda mais que a melodia desarma qualquer reticência, das alturas de um ré agudíssimo e longo.
Que canção incrível: "Minha cabeça é a maçã sem centro/ Minha mente, a casa sem porta. Meu coração é o palácio onde morar..." Abre-se para ela sem chave, como se abrem as memórias da música antiga mais antiga de todas, e a mais moderna também.
Outras canções: "The Salley Gardens", favorita do escritor James Joyce; "I Am a Poor Wayfaring Stranger", reeditando o "Êxodo" com fervores gentis do século 19; "Barbara Allen", mencionada no "Diário" de Samuel Pepys, em 1655; "Henry Martin", balada em que Scholl pode mostrar sua voz de barítono, alternada teatralmente com a de contratenor; e outras 12 músicas que nunca se ouviu e sempre se conheceu.
Nunca é exagero. "Black Is the Color", por exemplo, está entre as "Folksongs" recriadas pelo compositor contemporâneo Luciano Berio (em 1964).
Livra-se aqui de tudo o que não é essencial. Encerra o disco em suspenso, justamente na palavra "stands" ("fica"). Sozinha, sem acompanhamento neste último compasso, a voz mal se deixa perceber na despedida do "s".
Atrás dessa música existe uma outra música. É lá que se está.

Wayfaring Stranger - Folksongs     


Artista: Andreas Scholl e Orpheus
Chamber Orchestra
Lançamento: Decca (www.decca.com)
Quanto: R$ 50, em média





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