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COMENTÁRIO
Filme de Mel Gibson codifica o que resta aos EUA
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM NOVA YORK
Eu odeio aqueles que tentam
generalizar os EUA como
sendo uma coisa ou outra. Geralmente tenho uma resposta na
ponta da língua: "de qual América
vocês estão falando? Dos ucranianos, dos sino-americanos, dos ítalo-americanos, como De Niro,
Pacino, Coppola, Scorsese, Al Capone e por aí vai, ou dos judeus
americanos? Ou será que vocês
estão falando dos "WASPs" (protestantes brancos anglo-saxões)?
Ou falam dos hispânicos, dos porto-riquenhos ou dos cubanos que
constituem a metade de Miami?
Qual América, meu santo Deus?
Então, cheguei à conclusão que
a única maneira de se definir esse
país é por fatias do momento. Esse país existe quase que virtualmente e existe obstinadamente e
compulsivamente para um determinado assunto. Depois ele morre e pronto, foi-se, acabou. Assim
fica mais fácil. Ora é O.J. Simpson,
ora é Bin Laden, ora é o escândalo
da Enron, acabou de ser a vez de
Michael Jackson de carregar a
cruz e Martha Stewart está quase
chegando ao fim do seu purgatório quando... de repente, explode
no horizonte uma bomba mais
potente do que essas que explodem em Bagdá diariamente.
Trata-se do último filme de Mel
Gibson, a "Paixão de Cristo" que
em inglês levou um título estranho e que soa quase que como um
erro "The Passion of THE Christ",
como se dado por um desses tradutores de terceiro mundo.
Para dar uma idéia da dimensão
da confusão, polêmica e controvérsia que esse filme -declaradamente anti-semítico (não resta a
menor duvida)- está causando,
basta dizer que o Oscar, o grande
momento da vida americana, está
praticamente relevado a segundo
lugar. Mel Gibson conseguiu roubar a cena.
Daqui de onde moro pro ensaio
no La MaMa, passo por três complexos de cinema onde estão levando o filme, que estreou nesta
semana nos EUA. Às 8h30, já havia filas gigantescas (e quero uma
ênfase enorme na palavra gigantesca), assim como nos bons velhos concertos de rock ou num
Fla-Flu. Muita gente pernoitou
(pelo que eu ouvi no canal New
York One) para conseguir ingresso pra sessão do meio-dia.
Sim, esse é o país dos paradoxos
mesmo, especialmente a Califórnia que tem como governador um
austríaco, "the Terminator", o
nosso querido Arnie Schwarzennegger, representando valores republicanos, enquanto é casado
com Maria Shriver, da família
Kennedy, todos altamente democratas até o fundo da alma. Nessa
mesma Califórnia em que Gibson
é ídolo e homófobo (sim, ele não
permitiu que nenhum gay integrasse sua equipe ou elenco...
bem, o filme foi rodado na Itália,
mas é uma release de LaLaLand,
ou seja, Hollywood), no dia em
que escrevo, Rosie O'Donnell,
personalidade de TV e lésbica assumida, casou-se com sua parceira em San Francisco depois de
quase mil gays e lésbicas fazerem
o mesmo no percurso da semana
passada.
Mas agora, ao filme. Não vou
mentir e dizer que enfrentei a fila.
Os meus ensaios estão puxados
demais e não tenho paciência pra
congelar na fila. Usei das minhas
influências e fui numa sala de projeção na Broadway com a 49 e assisti a quase duas horas e meia de
pancadaria. Os críticos estavam
certos. É porrada e mais porrada,
a ponto de se ver a pele se destacar
do corpo. Sim, e Gibson mantém
que foram os judeus que mataram Cristo e que os romanos nada
tiveram a ver com isso. Pilatos
aparece como uma pessoa ingênua e Satã é interpretado por uma
mulher (mas numa inversão de
papéis, pois ela pretende fazer o
papel de um homem veado, ou seja, uma total loucura que se passa
na cabeça de Gibson, que fez desse filme uma obsessão).
Não há o que descrever sobre o
filme pois quando há diálogo ele é
tão mal escrito e melancólico que
dá vontade de ir comprar pipoca.
E quando não há diálogo, as cenas
de violência são de tal forma exageradas que, ou se enxerga aquilo
como um cartoon, ou se fecha os
olhos. Não entendi o porquê disso
tudo. Os extras italianos são sofríveis. Se Gibson quis dar uma de
Pasolini, usando camponeses, se
deu mal. Ah, mas Pasolini era homossexual, então, claro, Gibson
jamais se inspiraria em uma figura tão blasfema.
O evento Gibson, assim como
quase tudo isso que está acontecendo nesse imenso pais (o caso
contra Michael Jackson, que não é
branco nem preto, adulto nem
criança, homem nem mulher), a
proibição hoje do programa de
rádio de um dos últimos bastiões
da liberdade de expressão e vulgaridade, Howard Stern, essa pegação no pé da Martha Stewart
(quando todo mundo faz o que
ela fez), e a vergonha que a administração Bush está passando a
cada soldado que morre em Bagdá e com cada declaração de Daniel Kay e Carl Ritter de que não
existem armas de destruição em
massa, o que resta a esse país talvez esteja escondido ou codificado no filme de Mel Gibson e na
eleição de Schwarzenegger, que
expressou que um imigrante, depois de 20 anos morando aqui,
deveria poder ser presidente. A
mensagem? Tendo em vista que
um gosta de levar porrada e o outro é filho do Terceiro Reich... Dá-lhe porrada, Arnie!
Gerald Thomas é diretor de teatro
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