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HISTÓRIA
Em "Humeurs Vagabondes", autor francês analisa formas de circulação e seus relatos entre os séculos 16 e 18
Roche explica por que os homens viajam
FERNANDO EICHENBERG
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM PARIS
Em 1955, ao se deparar com a
célebre frase "odeio as viagens e
os exploradores", abertura do
clássico "Tristes Trópicos", de
Claude Lévi-Strauss, o historiador
francês Daniel Roche, 68, disse ter
assimilado a confissão como uma
provocação num momento em
que tudo inspirava ao incentivo e
não ao fim das viagens.
Segundo ele, as palavras do antropólogo atuaram como um catalisador secreto no seu espírito,
um estímulo na busca da resposta
a uma "questão essencial à cada
um de nós e à nossa civilização incessantemente preocupada em
fugir de si mesma". Por que partir
e por que retornar?
Sua interrogação resultou, depois de anos de pesquisas, num
volumoso ensaio recentemente
lançado na França, "Humeurs
Vagabondes. De la circulation des
hommes et de l'utilité des voyages" ("Humores vagabundos. Sobre a circulação dos homens e a
utilidade das viagens", ed. Fayard,
1.036 págs, 32 euros).
Especialista do Iluminismo, o
historiador analisa a oposição entre sedentarismo e mobilidade, e
todas as formas da circulação de
indivíduos e populações entre os
séculos 16 e 18, passando também
pelo gênero dos relatos de viagens. Daniel Roche manifesta sua
preocupação com um mundo que
se tornou um grande comércio de
cidades e paisagens.
Folha - Por que, a partir do Renascimento, há essa enorme necessidade de circular que coloca a Europa em movimento?
Daniel Roche - No meu livro, falo
mais de mobilidade e circulação
do que de viagens. As viagens são
escolhas, em relação à sua função
e à finalidade do trajeto, e terminam por designar um modo de
descoberta do mundo. Viaja-se
por uma descoberta intelectual,
científica, social. Há certas injunções que fazem as pessoas viajarem, mas que não são totalmente
deterministas. A mais evidente
delas é a econômica, que implica
no deslocamento.
Em todos os países da Europa, o
comércio local se faz por meio de
sucessivas mobilidades. As necessidades profissionais podem desembocar em verdadeiras curiosidades e transformações intelectuais, e é isso que me interessa em
cada tipo de mobilidade.
Folha - O sr. invoca também a mobilidade de religiosos e peregrinos.
Roche - Os bispos, por exemplo,
têm o dever de conhecer sua diocese, e a visita pastoral faz parte de
sua vida religiosa, profissional e
pessoal. Nessa ocasião, eles descobrem a diversidade de seus fiéis, e
é toda uma geografia religiosa que
se instala. Esses bispos são obrigados, de tempos em tempos, a visitar a capital, na qual são realizadas
as assembléias gerais do clero, e
capitais de outras regiões.
A mobilidade dos peregrinos é
algo mais massivo, que se transforma aos poucos entre a Idade
Média e o século 19. Há uma grande transformação, porque, a partir do século 17, e no século 18, as
igrejas e os Estados passaram a
desconfiar de todos esses movimentos de peregrinação, vistos
como desordem e geradores de
despesas. Houve uma política de
controle tanto pelas autoridades
religiosas como civis. O fluxo global de peregrinos não se reduziu
muito, mas muitas dessas peregrinações se regionalizaram.
Folha - Qual a importância da circulação dos estudantes nesse período?
Roche - A peregrinação acadêmica, como se dizia na época, e
ainda hoje na moda, é uma das dimensões intelectuais e materiais
desses grandes deslocamentos.
Nesse caso, também foram necessárias pesquisas bastante precisas
para provar que, mesmo o melhor
momento da mobilidade universitária medieval não atingiu mais
de 10% ou 20% da massa estudantil. Mas isso dava, ainda assim, um
modelo para o funcionamento
das universidades, que associava
à essa mobilidade os professores e
os alunos.
Os Estados modernos criaram
universidades por meio do recrutamento nacional e local. O que
fez com que uma parte dessa massa tenha se dividido na geografia
dos centros universitários, criados em função do credo das diferentes igrejas e da estatização das
grandes nações.
Folha - Como a questão da circulação, essencial para a cultura ocidental, enfrenta a oposição entre
sedentariedade e mobilidade?
Roche - Entre os séculos 16 e 18
surge uma dupla interrogação. A
primeira é a de que a sociedade se
concebe como um mundo que
deve ser, sobretudo, imóvel. Sua
finalidade é fora do tempo, é a redenção, qual seja a cultura religiosa. Depois da Reforma, as idéias
são as mesmas, vive-se num mundo no qual o passado e a história
são vistos como uma referência
explicativa, na qual encontramos
todos os exemplos de vida e políticos. A novidade se introduz,
mas sempre com dificuldade.
Vive-se num mundo no qual a
hierarquia orgânica, a expressão
dessa concepção sagrada e fixante
do mundo, impõe que se fique
preso a um lugar, a essa condição.
A mobilidade está ligada a fenômenos muito duros da vida social
antiga, como as guerras, as epidemias e, ao mesmo tempo, é uma
ameaça para a estrutura social estabelecida e o mundo dominante,
e a cada vez vemos reaparecer as
mesmas tentativas para identificar as profissões móveis, desconfiar dos pobres e dos criminosos, e
tentar, pouco a pouco, controlá-los.
Folha - Qual o fundamento teórico para esse contexto?
Roche - A teoria em relação a essa desconfiança é a posição de
Pascal: a felicidade dos homens é
muito melhor assegurada se ficarmos no quarto do que se nos lançarmos nas estradas do mundo,
com os perigos que isso implica.
Mas, apesar da desconfiança, a
circulação aumenta. Há um segundo debate, de discutir se elas
são realmente necessárias.
No final, é interessante, pois há
toda uma corrente do Iluminismo, levada pelo patriotismo local,
e mesmo pelo nacionalismo, que
diz, com Rousseau, que o melhor
é conhecer o vizinho de sua porta
em vez de pretender ir ver como
vivem os turcos. E vai se admitir
um consentimento estético suplementar, pois a descoberta da viagem regional, romântica pitoresca, vai se dar nesse quadro reorganizado pelas transformações políticas pós-revolucionárias.
Folha - Como as viagens vão influir no relativismo dos costumes,
na erosão dos valores morais e políticos no século 18?
Roche - Em relação ao relativismo dos costumes, o mestre desse
pensamento, que atinge a função
mesmo da mobilidade na transformação em relação à religião,
aos costumes e à política, é Montaigne. No século 18, vamos assistir a toda uma utilização filosófica
pela literatura de textos de viajantes, como Monstesquieu, com
suas "Cartas Persas". Descobre-se
que essas civilizações diferentes
questionam as certezas mais absolutas em todos os domínios do
pensamento.
Folha - Surge nesse período um
controle maior da circulação.
Roche - Em período de crise, há
uma grande desconfiança das autoridades nacionais e das polícias
urbanas em relação ao acolho
desses fluxos populares. Quando
eles atingem um número incontrolável, surgem questões em relação ao controle, e há toda a implantação de uma polícia para
tentar criar meios de melhor conhecer os movimentos e vigiar as
populações. São criados os papéis
de identidade e surge o passaporte. Hoje, o passaporte eletrônico é
a finalização desse movimento. A
carteira de identidade é um fenômeno do século 19, ela surgiu depois do passaporte.
HUMEURS VAGABONDES. DE LA
CIRCULATION DES HOMMES ET DE
L'UTILITÉ DES VOYAGES. De Daniel
Roche. Editora: Fayard. Quanto: 32 euros,
1.036 páginas. Onde encontrar:
www.amazon.com
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