São Paulo, sábado, 28 de fevereiro de 1998

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Carnaval, Mangueira e "Central do Brasil"

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Oficialmente começou na última quarta-feira, dita de Cinzas, mas um dos sinais da Quaresma está visível desde o início de fevereiro. Por conta das travessuras de El Niño -e dos homens que as provocam- quaresmeiras e manacás se anteciparam. Encheram de roxo as ruas e praças antes dos tradicionais 40 dias de penitência.
A Natureza é sábia, queria precipitar a quarentena de reflexão. Não conseguiu: a enorme barrica de cerveja, totem da estabilidade monetária e da civilização do descaso, manteve o agito no seu ponto mais alto.
Agora começou e, mesmo assim, devagar porque o tríduo momesco -apelido dos tempos em que o Carnaval durava três dias- vai até hoje à noite, por conta do repeteco dos desfiles das campeãs das escolas de samba.
Folia é palavra que mais apareceu no noticiário nestes dias, herança de um Carnaval de rua, onde todos se divertiam. Brincar e pular eram verbos literalmente carnavalescos -nas batalhas de confete, nas passeatas dos blocos e ranchos, nos salões, nos desfiles das grandes sociedades, nas escolas de samba.
Esta nossa folia vem do francês "folie", desvario, disparate. Relaciona-se com "fou", doido, e deu "foule", multidão, turba. Chegou aos fleumáticos ingleses com "folly", desatino. Folia hoje em São Paulo é, na véspera do feriadão, ficar seis horas engarrafado na descida da serra em busca do marzão e, depois, enlatado na sucessão de chopadas e churrascos à beira de piscinas mornas.
Não sou saudosista em matéria de Carnaval ou do seu mais extraordinário remanescente, a escola de samba. A nostalgia é legítima quando se trata de valores e princípios, experiências não podem ser repetitivas porque deixam de ser experiências. A escola de samba é um processo permanente de fusão e infusão, impossível contê-lo.
Meu pai também levava-me à Avenida (Rio Branco) para assistir ao desfile dos carros alegóricos das grandes sociedades (formidável exercício popular de crítica política) até que o Estado Novo resolveu apoiar a competição recém-começada (1932) entre aqueles grupos oriundos dos morros e favelas. Crescidinho, passei a freqüentar os desfiles na antiga Praça Onze, a 500 metros da Marquês de Sapucaí.
"Deixa falar", do Estácio (não muito distante dali), nasceu em 12 de agosto de 1928. Considerada a primeira escola de samba, nunca foi uma E.S.: era um B.C. (bloco carnavalesco). A segunda foi a primeira, mas também começou como B.C. -Mangueira, criada em 28 de abril de 1929 (conforme o jornalista-historiador Sérgio Cabral na indispensável "As Escolas de Samba do Rio de Janeiro", Lumiar Editora, 1996).
Significa que esse fenômeno cultural essencialmente carioca começou a se institucionalizar há apenas 70 anos, sendo que alguns dos seus patriarcas ainda estão vivos, como Carlos Cachaça (Carlos Moreira de Castro, aquele a quem Chico Buarque beija na testa tão carinhosamente no clipe da TV Globo).
As escolas de samba do Rio de Janeiro, matrizes das que hoje se espalham pelo país inteiro, reproduzem fielmente o processo de transformações urbanas, sociais, culturais, artísticas e políticas das metrópoles brasileiras. Pretender que permaneçam "autênticas", congeladas no tempo, é condená-las à fossilização.
A abundante exibição de bundas, peitos e genitálias é uma espécie de resposta ao pudor dos primeiros blocos, alguns originários do polígono do Mangue (a antiga zona do baixo meretrício), reduto da boemia pobre que se associou ao Carnaval. A farta oferta das partes pudendas deserotiza o erotismo, como nos santuários de nudismo. Agride menos ao bom gosto do que a ginástica boba da oxigenada Carla Perez, outra criação do nosso mundo cervejeiro.
A apresentação de uma das grandes escolas cariocas (hoje, também fluminenses) é um espetáculo que nada fica a dever aos musicais que permanecem estáticos ao longo de anos na Broadway. Com a vantagem de serem exibidas em movimento, com alguns milhares de figurantes, amadores, razoavelmente ensaiados. Montadas em apenas alguns meses, mudam radicalmente a cada ano numa criatividade extraordinária, incorporando novas linguagens cênicas, tecnológicas e, sobretudo, enriquecidas tematicamente.
Aqui a grande virada deste ano. O samba-enredo da Mangueira não é aquela apoteose de plumas e breques imaginada por Darcy Ribeiro, nem apenas homenagem ao nosso maior poeta popular, é um reencontro do país com a sua humanidade.
Chico Buarque conseguiu ultrapassar o clubismo e o partidarismo que na cultura sambística são tão fortes quanto na futebolística. Passada a ressaca, o pessoal da Viradouro ou da Portela terá que se juntar à festa em torno da pessoa-emblema da música popular brasileira.
Sempre se falou em emoção no sambódromo, mas nunca se viu tanta emoção nas páginas de jornal. Aquela manchete de "O Globo" ("A noite inesquecível em que o poeta virou poesia", 25/2/98, p.5) não é uma licença jornalística tomada ao acaso, mas uma explosão de sentimentos num meio cada vez mais enviesado pelo palavreado "forte" para agarrar leitores. Remete à orgânica ligação tão bem ilustrada por Sérgio Cabral entre jornalismo e Carnaval, entre jornalismo e cidade, entre jornalismo e humanismo.
Há um Carnaval humanista que não precisa passar pelo pierrô e a colombina. Não é traçado pelo "samba no pé" -tolice de quem não entendeu o espírito da coisa-, vem do samba no coração. De Mangueira jorra música o ano inteiro.
Estação Primeira, parada inicial de uma linha ferroviária suburbana, é mais do que isso: um percurso chamado "Central do Brasil". O filme de Walter Salles Jr. com Fernanda Montenegro arrebatou dois grandes prêmios no Festival de Berlim no auge do nosso Carnaval.
No exato momento em que os televisores do mundo deviam estar exibindo flashes do desfile carioca, os jornais europeus estavam falando de um cinema brasileiro humanista, enternecido e enternecedor. Algo como "Ladrão de Bicicletas", com que Vittorio de Sicca, no após-guerra, chamou a atenção do mundo para a pobreza e a dignidade italiana.
A grande dama do teatro brasileiro e esse jovem príncipe da nossa cinematografia representam, individualmente e em conjunto, um padrão de comportamento inusitado na cena intelectual contemporânea. Duas gerações, uma mesma maneira de ser: discretos, densos, firmes, esmerados. Não se badalam e não se deixam badalar. Não se esbanjam. Representam uma equação nova: triunfam antes da celebração mediática. Fazem antes de anunciar que vão fazer.
Em campos diferentes, mas não muito distantes, em matéria de postura e compostura, de Chico Buarque. Consagra-se em pleno Carnaval, império da cervejota, um afinado trio de competência e delicadeza. Paradigma para uma reflexão quaresmeira sobre o Brasil central e vital.



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