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ARNALDO JABOR
Miséria só acaba quando parar de dar lucro
Salário mínimo. Todo ano ele
nos faz lembrar da miséria. Tanto
falamos da miséria que ela deve
ter algumas vantagens. Quais serão? Bem... A miséria é uma indústria. Por exemplo: quanto lucra a indústria da seca? Quanto
faturam as igrejas evangélicas
com a miséria, quantos milhões
de dízimos pingam nos bolsos daqueles oportunistas de terno e
gravata que não acreditam em
Deus? (Edir Macedo não acredita
em Deus; só no diabo, que ele usa
como um competidor de mercado).
É uma indústria milionária a
exploração do desespero. Gera estações de TV, casas em Miami.
Quanto se ganha no Brasil faturando a merda? Merda também é
mercado. A miséria produz a maravilhosa ignorância, a bendita
estupidez popular que faz a delícia dos produtores culturais do lixo, na música, na TV, no jornalismo. Quanto vale um Ratinho sem
miséria?
A miséria dá lucro político. Para os demagogos, a miséria tem a
vantagem de ser "insolúvel". Assim, pode-se condená-la sem perigo e sugerir simplismos. Falar na
miséria denota preocupação humanitária, traz votos. Mais: falar
dela com horror é lucrativo porque é um jeito esperto de esconder
a raiz dos problemas e manter intactas as causas. É uma maneira
prática de mentir e dizer a verdade ao mesmo tempo. Outro dia, o
Departamento de Estado Americano fez a grave acusação de que
"somos um país de miseráveis".
Verdade e mentira. Habilmente,
os americanos se excluem do problema, tratando a miséria como
causa e não como consequência.
Assim, posam de bacaninhas,
continuando a nos ajudar a produzir mais miséria, sobretaxando
nossos produtos.
Depois do socialismo, caiu a ilusão de que éramos úteis em pensamento e palavras (não em
obras...), acabou o tempo em que
torcíamos por Cuba como por um
time. Hoje, caímos na fossa pela
ausência de formas de luta contra
a injustiça. No início, essa depressão nos angustiava, mas, aos poucos, deu lugar a um secreto cinismo, quase doce. O fim da ilusão
de que éramos úteis traz um
grande alívio, pois, já que não
adianta fazer nada, podemos nos
dedicar à elegância, à arte pessoal
de bem viver. O fim das ideologias
é um bálsamo para a culpa.
Há também o lucro dos "sinceros", que acreditam na caridade,
melancólico sentimento cristão
que tem a vantagem de manter a
miséria como algo "fora" do capitalismo, como fruto da maldade
humana, como um erro de percurso e não como uma produção
concreta do sistema. Podemos
mantê-la como exceção, quando
ela é a regra. A grande vantagem
da caridade é que ela segura os
pobres em seu lugar e ainda nos
dá o brinde de um sorriso triste e
grato.
Os patrões também gostam da
pobreza, porque ela diminui os
salários. Podem pagar 200 paus a
um desgraçado limpador de fossas porque o mercado de mão-de-obra é imenso. Se ele não quiser a
graninha, outros virão...
Nossa felicidade cotidiana usa
muito a miséria para serviços
úteis, desde as empregadas até os
mendigos que aliviam nossa
consciência. Se não fossem esses
assaltos, ninguém estaria preocupado... Nossas elites não querem
democracia social, querem o privilégio. Nem pensar em incluir essas massas no mundo do consumo e dos direitos.
A pobreza é nossa principal riqueza. Não são nem as bundas
nem o futebol; são os pobres...
A miséria já deu muito lucro a
artistas e intelectuais. Com a miséria, já ganhamos dinheiro fazendo poesia, filmes, até artigos
como este. Os miseráveis eram
úteis para nos justificar e absolver
existencialmente.
Os miseráveis já tiveram um
grande "glamour" político. Eles
eram a bandeira do futuro, o símbolo da revolução. Eles não sabiam, mas eram nosso tema e esperança. Os miseráveis eram nossa salvação. Hoje perderam esta
função; nos decepcionaram, pois
não sabemos mais para que servem.
A miséria tem também uma
vantagem filosófica, pois é uma
categoria que leva a aporias, a becos sem saída reflexivos. A miséria faz mais fáceis os raciocínios
filosóficos muito complicados. O
mundo anda, apesar da miséria
que fica como um detrito sob as
rodas de um carro, uma lata velha que rola presa no chassi. Estamos à porta de uma sinistra e fascinante revolução tecnológica.
Talvez a maior da história, para o
bem ou para o mal. Ninguém sabe o que vai acontecer. E, então, a
categoria "miséria" é um grande
álibi para a impossibilidade de
"sínteses", o pau-para-toda-obra
para a falta de sentido. Para muitos acadêmicos, a miséria é usada
como uma espécie de fim da história ao avesso, como uma âncora para desconstruir qualquer novidade: "Nada importa... Pois há
a miséria!". É o uso antiiluminista da miséria, para esconder falta
de estudo ou de imaginação.
E por fim a miséria tem a vantagem também de nos ajudar a
entender o tempo atual. Nossos
doces miseráveis têm uma sabedoria nova, fatalista, muito de
acordo com os tempos pós-utópicos. Eles são tão generosos que
nos ensinam, por exemplo, que a
idéia de continuidade histórica,
de evolução do espírito, é errada.
Um país pode andar para a frente
ou para trás. Os miseráveis não
podem se dar ao luxo (há, há!) de
ser humanistas, como os ricos. Os
miseráveis têm uma sabedoria cínica, como os alemães. São pragmáticos como os americanos. Os
miseráveis não gostam de abstrações; não se pode falar em "opção" ou "projeto" com eles. São
também desesperançados, mas
não são niilistas; são materialistas, mas não dialéticos (graças a
Deus!). Só pensam em coisas substantivas como casa e comida.
Até existencialmente os miseráveis nos são superiores: são mais
corajosos que nós no crime. E têm
uma paz no sofrimento e na solidão que nos humilha e até nos dá
inveja. Eles sabem que a miséria
só vai acabar quando parar de
dar lucro.
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