São Paulo, terça-feira, 28 de março de 2000


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ARNALDO JABOR
Miséria só acaba quando parar de dar lucro

Salário mínimo. Todo ano ele nos faz lembrar da miséria. Tanto falamos da miséria que ela deve ter algumas vantagens. Quais serão? Bem... A miséria é uma indústria. Por exemplo: quanto lucra a indústria da seca? Quanto faturam as igrejas evangélicas com a miséria, quantos milhões de dízimos pingam nos bolsos daqueles oportunistas de terno e gravata que não acreditam em Deus? (Edir Macedo não acredita em Deus; só no diabo, que ele usa como um competidor de mercado).
É uma indústria milionária a exploração do desespero. Gera estações de TV, casas em Miami. Quanto se ganha no Brasil faturando a merda? Merda também é mercado. A miséria produz a maravilhosa ignorância, a bendita estupidez popular que faz a delícia dos produtores culturais do lixo, na música, na TV, no jornalismo. Quanto vale um Ratinho sem miséria?
A miséria dá lucro político. Para os demagogos, a miséria tem a vantagem de ser "insolúvel". Assim, pode-se condená-la sem perigo e sugerir simplismos. Falar na miséria denota preocupação humanitária, traz votos. Mais: falar dela com horror é lucrativo porque é um jeito esperto de esconder a raiz dos problemas e manter intactas as causas. É uma maneira prática de mentir e dizer a verdade ao mesmo tempo. Outro dia, o Departamento de Estado Americano fez a grave acusação de que "somos um país de miseráveis". Verdade e mentira. Habilmente, os americanos se excluem do problema, tratando a miséria como causa e não como consequência. Assim, posam de bacaninhas, continuando a nos ajudar a produzir mais miséria, sobretaxando nossos produtos.
Depois do socialismo, caiu a ilusão de que éramos úteis em pensamento e palavras (não em obras...), acabou o tempo em que torcíamos por Cuba como por um time. Hoje, caímos na fossa pela ausência de formas de luta contra a injustiça. No início, essa depressão nos angustiava, mas, aos poucos, deu lugar a um secreto cinismo, quase doce. O fim da ilusão de que éramos úteis traz um grande alívio, pois, já que não adianta fazer nada, podemos nos dedicar à elegância, à arte pessoal de bem viver. O fim das ideologias é um bálsamo para a culpa.
Há também o lucro dos "sinceros", que acreditam na caridade, melancólico sentimento cristão que tem a vantagem de manter a miséria como algo "fora" do capitalismo, como fruto da maldade humana, como um erro de percurso e não como uma produção concreta do sistema. Podemos mantê-la como exceção, quando ela é a regra. A grande vantagem da caridade é que ela segura os pobres em seu lugar e ainda nos dá o brinde de um sorriso triste e grato.
Os patrões também gostam da pobreza, porque ela diminui os salários. Podem pagar 200 paus a um desgraçado limpador de fossas porque o mercado de mão-de-obra é imenso. Se ele não quiser a graninha, outros virão...
Nossa felicidade cotidiana usa muito a miséria para serviços úteis, desde as empregadas até os mendigos que aliviam nossa consciência. Se não fossem esses assaltos, ninguém estaria preocupado... Nossas elites não querem democracia social, querem o privilégio. Nem pensar em incluir essas massas no mundo do consumo e dos direitos.
A pobreza é nossa principal riqueza. Não são nem as bundas nem o futebol; são os pobres...
A miséria já deu muito lucro a artistas e intelectuais. Com a miséria, já ganhamos dinheiro fazendo poesia, filmes, até artigos como este. Os miseráveis eram úteis para nos justificar e absolver existencialmente.
Os miseráveis já tiveram um grande "glamour" político. Eles eram a bandeira do futuro, o símbolo da revolução. Eles não sabiam, mas eram nosso tema e esperança. Os miseráveis eram nossa salvação. Hoje perderam esta função; nos decepcionaram, pois não sabemos mais para que servem.
A miséria tem também uma vantagem filosófica, pois é uma categoria que leva a aporias, a becos sem saída reflexivos. A miséria faz mais fáceis os raciocínios filosóficos muito complicados. O mundo anda, apesar da miséria que fica como um detrito sob as rodas de um carro, uma lata velha que rola presa no chassi. Estamos à porta de uma sinistra e fascinante revolução tecnológica. Talvez a maior da história, para o bem ou para o mal. Ninguém sabe o que vai acontecer. E, então, a categoria "miséria" é um grande álibi para a impossibilidade de "sínteses", o pau-para-toda-obra para a falta de sentido. Para muitos acadêmicos, a miséria é usada como uma espécie de fim da história ao avesso, como uma âncora para desconstruir qualquer novidade: "Nada importa... Pois há a miséria!". É o uso antiiluminista da miséria, para esconder falta de estudo ou de imaginação.
E por fim a miséria tem a vantagem também de nos ajudar a entender o tempo atual. Nossos doces miseráveis têm uma sabedoria nova, fatalista, muito de acordo com os tempos pós-utópicos. Eles são tão generosos que nos ensinam, por exemplo, que a idéia de continuidade histórica, de evolução do espírito, é errada. Um país pode andar para a frente ou para trás. Os miseráveis não podem se dar ao luxo (há, há!) de ser humanistas, como os ricos. Os miseráveis têm uma sabedoria cínica, como os alemães. São pragmáticos como os americanos. Os miseráveis não gostam de abstrações; não se pode falar em "opção" ou "projeto" com eles. São também desesperançados, mas não são niilistas; são materialistas, mas não dialéticos (graças a Deus!). Só pensam em coisas substantivas como casa e comida.
Até existencialmente os miseráveis nos são superiores: são mais corajosos que nós no crime. E têm uma paz no sofrimento e na solidão que nos humilha e até nos dá inveja. Eles sabem que a miséria só vai acabar quando parar de dar lucro.


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