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CINEMA REESTRÉIA
Vertigem
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
``Um Corpo que Cai'' (``Vertigo'') tem quase tudo o que se pode
pedir do cinema, seja qual for a cópia: amor e rancor, imaginação e
desejo, verdade e mentira, obsessão e desejo, realismo e romantismo, memória e esquecimento.
Esta obra-prima, agora restaurada, chega um tanto prejudicada ao
Brasil (leia texto nesta página).
Isso não afeta a história de Scottie, tira afastado por sofrer de medo de altura, a quem um amigo
contrata para seguir sua mulher,
Madeleine, supostamente insana.
Scottie apaixona-se pela mulher.
Quando ela morre, tentará fazer de
Judy, garota parecida com ela,
uma nova Madeleine.
Seja pelo restauro, seja pelas cópias novas, a imagem impressiona
pela riqueza cromática. O som, remasterizado, dá mais relevo à música de Bernard Herrmann.
Mas ``Vertigo'', em cópia nova
ou velha, em vídeo, até cortado pelos comerciais da TV, é fascinante.
É estranho que Hitchcock tivesse
tantas reservas a seu respeito, tratando-o como um trabalho relativamente frustrado.
Talvez a frustração preceda o filme e venha de 1956, quando contratou Vera Miles. Era a atriz que
Hitchcock queria transformar numa nova Grace Kelly. Sua primeira
impressão sobre Vera foi a de uma
mulher que se veste mal. ``Ela naufraga sob as cores'', comentou.
É em torno disso que gira a sequência central do filme: aquela
em que Scottie (James Stewart)
descobre na rua a vulgar Judy e trata de transformá-la num duplo de
sua amada morta, Madeleine.
A pedra de toque da mudança de
Judy em Madeleine é o vestuário.
Judy também naufragava sob cores, como Vera Miles.
Hitchcock sofreu intensamente
quando Vera Miles ficou grávida
de Gordon Scott, ``seu marido
Tarzã'', como o chamava, e se viu
impossibilitada de fazer o filme.
A relação de Hitchcock com suas
atrizes não é um dado secundário.
Amou tortuosamente Ingrid Bergman, Grace Kelly, Tippi Hedren.
Sentiu-se rejeitado por todas. Mas,
segundo consta, nunca foi tão obsessivo com nenhuma delas quanto com Vera Miles. E ela o trocara
pelo Tarzã do cinema.
O porquê de ele ter aceitado Kim
Novak para o lugar de Miles é um
mistério. Novak, de formas exuberantes, era o oposto da atriz hitchcockiana -nórdica, distante.
Seu primeiro desentendimento
com Novak versou sobre os trajes,
justamente. Ela achava que ``perderia consistência'', com os cabelos loiros e vestida com um tailleur
cinza. Ora, era bem o que Hitchcock queria: uma figura ilusória,
que tivesse saído de um sonho.
O roteirista Samuel Taylor fez o
comentário definitivo sobre Novak: se ela fosse a atriz com que
Hitchcock sonhava, o filme não teria dado tão certo.
E mais: assim como Hitchcock
conseguiu ``tirar a consistência''
de Novak, a atriz criou uma Judy
imensamente carnal. É improvável
que Miles tivesse chegado a tanto.
Kim Novak talvez seja a pedra de
toque desse filme perfeito: o roteiro, a luz, os cenários, os créditos, a
música -tudo leva a um conjunto
trágico, atormentadamente sinfônico, criado por um homem que
nunca colocou de modo tão intenso suas fantasias e idéias sobre o
amor, a mulher e a duplicidade dos
seres em outro de seus filmes.
Mesmo os famosos beijos hitchcockianos -beijos que parecem
assassinatos, já se disse- transmitem essa tensão entre vida e morte.
No caso, o diretor apoiou-se na escultura ``O Beijo'', de Rodin, onde
via as idéias de amor e danação.
Mas não esqueceu de introduzir
algo de especificamente cinematográfico: o movimento, hoje clássico, que conjuga a zoom de aproximação ao travelling de recuo
(quando Scottie experimenta a
vertigem). Imagem assombrosa,
que seu biógrafo Donald Spoto definiu como ``o equivalente visual
da soma de desejo e distância, da
vontade e do medo de cair, da atração e da rejeição''. ``Um Corpo
que Cai'' é a vertigem do cinema.
Filme: Um Corpo que Cai
Produção: EUA, 1958
Direção: Alfred Hitchcock
Com: James Stewart, Kim Novak
Quando: a partir de hoje nos cines Espaço
Unibanco/sala 2 e Cinearte 2
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