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MARCELO COELHO
Reservas devastadas
Um presidiário manda tatuar
no braço o nome da namorada. Ou uma rosa; ou o rosto de
Jesus; ou a clássica frase: "Amor,
só de mãe". Até aí, tudo normal.
Que o preso tenha uma tatuagem
com as figuras de Huguinho, Zezinho e Luizinho já é um pouco
mais estranho. Mas que se decida
pela imagem de um bebê de proveta -o feto encolhido dentro de
um tubo de ensaio, prolongando-se numa diagonal do braço até o
ombro, quase na altura do pescoço-, eis uma coisa bem mais difícil de explicar.
O detalhe é intrigante, mas certamente não está entre os maiores absurdos registrados em "O
Prisioneiro da Grade de Ferro". O
documentário de Paulo Sacramento, em cartaz no Espaço Unibanco, retrata o cotidiano do Carandiru poucos meses antes de
sua desativação. Várias cenas foram filmadas pelos próprios presos, alternando-se entre o banal e
o monstruoso.
Hesito antes de dar exemplos de
uma coisa e outra. O banal desaparece da memória. Tento descrever uma cena -uma disputa de
pênaltis na final do campeonato
interno de futebol, um detento
cantando rap, a visita semanal
dos familiares-, penso melhor, e
nada me parece tão banal assim.
Da cela, um preso filma os fogos
de artifício que comemoram o Réveillon na avenida Paulista. O
metrô passa ali perto com seus vagões iluminados e vazios. A imagem, em si desinteressante e rasa,
impregna-se de miséria humana.
Mas o filme não aposta muito
na compaixão do espectador. Ao
contrário de "Estação Carandiru" -tanto o livro de Drauzio
Varella quanto o filme de Hector
Babenco que se baseia nele-, "O
Prisioneiro da Grade de Ferro"
não apresenta personagens pitorescos, histórias engraçadas ou
emocionantes. Nada sabemos dos
detentos, a não ser sua condição
concreta.
Mesmo as cenas mais simples
-uns presos distribuindo marmitas a seus companheiros, alguém fazendo exercício ou coando café- trazem componentes de
absurdo e violência. Não desperta
muita simpatia, a mim pelo menos, a cena de presidiários treinando boxe com grande empenho; mas o filme também mostra
-como se fosse a imagem de
uma pena interminável- alguém se esfalfando numa esteira
ergométrica em petição de miséria. O carrinho de mão que distribui as quentinhas, conduzido aos
trancos, dá suficiente idéia da
brutalidade do ambiente.
E, claro, não é nada diante das
coisas realmente hediondas que
iremos ver. Há os ratos que tomam conta do pátio, à noite, como se fossem os donos do lugar.
Há os closes de doentes na fila do
atendimento: pernas deformadas,
tumores de pesadelo. Há as fotos
de presos trucidados pelos companheiros. Há, por fim, as celas do
último círculo do inferno: a câmera é introduzida pela abertura da
porta de ferro, e lá dentro distinguimos um homem sozinho e nu,
como um bicho. Ou dezenas deles,
que se comprimem no escuro como pilhas de cadáveres. Ficam ali
dia e noite, mal podendo se mexer.
Ao mesmo tempo, há o grande
número de presos que levam uma
vida "normal" dentro da prisão.
O comércio de jeans e televisores,
assim como o de drogas, é mostrado sem constrangimento pelos
próprios detentos; um alambique
clandestino, tanto quanto o "trottoir" dos prostitutos, aparece em
franco funcionamento.
O presídio inteiro termina surgindo como se fosse a paródia sinistra do prédio de classe média
retratado por Eduardo Coutinho
em "Edifício Master". Cada detento, em sua cela, trata dos próprios interesses e, com certo orgulho, pode mostrar suas realizações e habilidades: o preso que desenha retratos dos outros, o que
faz bricolagens ou próteses dentárias e assim vai ganhando a vida.
Feito aos fragmentos, com cenas
filmadas pelos mais variados tipos de indivíduo, "O Prisioneiro
da Grade de Ferro" é ele próprio
uma espécie de bricolagem, em
que detalhes aparentemente sem
sentido acabam contribuindo para compor o resultado final. É de
um horror sem limite, inapelável.
Creio que o documentário impressiona ainda mais depois que
acaba. Incomodou-me a princípio a aparente desconexão das cenas. Percebi depois que o motivo
de meu mal-estar era outro. O
que realmente se apresenta como
dissonante e desconexo não são
as imagens do filme, mas sim as
falas que registra. É o discurso dos
próprios detentos que não faz sentido, ou melhor, que soa inautêntico.
O pronunciamento sinuoso do
pastor evangélico, a oração conformada do detento que diz "estar pagando sua dívida com a sociedade", as frases engessadas do
rapper, as inflexões insinceras de
um preso que protesta contra a
corrupção política ou contra o
consumismo da sociedade, tudo
parece fora de lugar. É como se os
presos tivessem sido privados não
só da liberdade de movimento,
mas da capacidade de dizer o que
pensam. São raros os que parecem falar com a própria voz: os
gays e os traficantes, isto é, os "ilegais" dentro do sistema, são curiosamente aqueles que não perderam esse poder.
Uma incrível inventividade está
em curso em outras situações: o
filme mostra a técnica empregada
para produzir pinga na cadeia ou
para montar uma máquina de
tatuagem com caneta esferográfica e motor de toca-fitas.
Falamos das árvores destruídas
na Amazônia, e não das reservas
imensas de criatividade e inteligência que se devastam em inumeráveis pessoas.
Volto ao bebê de proveta. Talvez a tatuagem signifique algo
perto disso: a esperança de que
um novo homem pudesse ainda
nascer de um terreno arrasado totalmente.
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