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Policial às avessas desvenda crimes do belo e da solidão
LUCIANA ARAUJO
DA REDAÇÃO
Quatro mulheres numa sala.
Uma reza, a outra acende um cigarro, a terceira pega seu batom,
enquanto a quarta sai mais uma
vez para andar. Elas não se cumprimentariam se se cruzassem na
rua... Aguardam para prestar depoimento. Um homem que cometeu um crime é a única pista
que liga essas vidas na história
que a portuguesa Dulce Maria
Cardoso tece no romance "Campo de Sangue" (Companhia das
Letras), lançado no Brasil durante
a 12ª Bienal Internacional do Rio.
O mistério que o livro traz, no
entanto, não gira em torno do criminoso. Ele é identificado logo no
primeiro parágrafo. O que não se
sabe é quem é a vítima e qual foi o
crime. Em suma, um policial às
avessas, como concluíram os
franceses, segundo Cardoso, 40.
"O que me espantou foi que durante três anos em Portugal ninguém falou de "Campo de Sangue"
[lançado lá em 2002] como romance policial. Eu mesma nunca
julguei que o que tinha escrito pudesse ser lido dessa maneira. E, de
fato, há um crime e o mistério
com relação à vítima", destaca ela.
Essa constatação aponta uma
marca original no livro de estréia
dessa portuguesa nascida em
Trás-os-Montes, mas é pouco para concluir de que matéria ele trata, como Cardoso revela: "Devo
confessar que esse crime é de todos os que acontecem no livro o
que menos me inquieta. Interessam-me mais os não-crimes".
O perfil do protagonista, e a trama em si, mostra-se por meio de
suas relações com as quatro mulheres: a mãe, a ex-mulher, a dona
da pensão onde mora e a moça
que espera um filho dele. "Para a
mãe ele era um filho distante; para
a ex-mulher, um caso perdido
que ela podia sustentar; para a senhoria, um contabilista trabalhador; e para a rapariga, um amante
promissor. Havia, pois, um homem que conseguira construir
um tranqüilo mundo de mentira
em que se movia de forma cronometradamente equilibrada. Até
um dia. A necessidade do romance vinha de querer descobrir como seria esse dia e todos os outros
que se lhe seguiriam", destaca.
Essas personagens reais na vida
do homem, mas que cumprem
papéis por ele inventados, entretanto, não são apenas vítimas de
um universo que ele criara. Também são protagonistas de suas
culpas, como Judas Iscariotes, a
quem o título do romance alude.
"Gosto de ler a Bíblia e uma vez
deparei-me com a passagem em
que se fala do terreno comprado
com as moedas que Judas recebeu
pela traição de Cristo, um terreno
chamado Hakeldamá que quer
dizer campo de sangue. Eu penso
nesse lugar como uma metáfora e
sinto que ele está por aí, por isso
quero identificá-lo", diz Cardoso.
Assim, o que se lê é uma história
de traições, na qual não há um fato específico que se caracterize como tal, mas um amontoado de
ações e não-ações com as quais os
personagens vão gastando o tempo, pagando o terreno onde se enterrará sua insanidade.
"O homem comete um crime,
depois de trair-se a si mesmo, de
ter desistido daquele que foi até
certo ponto. Mas a traição mais
grave será a de todos que assistem
indiferentes ou distraídos a tudo,
a traição lenta", analisa Cardoso.
Lentidão cronometrada. O tempo se impõem em "Campo de
Sangue" a cada parágrafo. "O
acerto de cada um com os outros
é também o acerto com o tempo,
o do relógio, mas também o tempo social. Um e outro estão, aliás,
relacionados, já que a sociedade
nos equilibra ocupando-nos o
tempo, ocupando-nos as tais 24
horas", avalia a escritora. "Nesse
sentido o tempo ocupado é um fator de equilíbrio. O processo por
que o homem [o protagonista] vai
passar, a manifestação do seu desajuste com os outros, passa também por um desgoverno em relação ao tempo. Ao perder o relógio, o homem perde o seu tempo e
o controle da vida que criara. O
próprio ritmo da história vai se alterando à medida que esse descontrole se instala", explica.
Num mundo que se equilibra
em mentiras, quando se perde a
referência do tempo, as maiores
tentações são os não-crimes, que
Cardoso citava acima, ou como
está no livro: os pecados da beleza
e da solidão, que levam à loucura.
Num romance em que a narrativa é minuciosamente trabalhada, não só no enredo, mas principalmente em sua forma, a construção de um universo ficcional
também alude ao ato da escrita.
O escritor também não comete
o pecado da solidão (criação) e o
pecado da beleza (sua estética)?
"Sim, o ato de criação é um ato individual e solitário através do qual
se pretende reorganizar o mundo,
perseguindo uma idéia de belo.
Trata-se de uma ousadia transgressora não só em termos sociais
mas também divinos, pois parece-me pertinente classificar como
pecado a transgressão de querer
imitar (corrigir?) o gesto divino
do Criador. Nessa ousadia pode
haver um pecado não classificado. Nesse sentido podemos encarar a literatura como um pecado",
responde Cardoso.
A escritora, que atualmente mora em Lisboa, passou parte de sua
infância em Angola, tendo regressado a Portugal em 1975. Seu segundo romance "Meus Sentimentos", ainda não tem previsão
de lançamento no Brasil.
Atualmente prepara o terceiro,
que se chamará "O Chão dos Pardais", sobre outro "pecado": "É
sobre o poder como doença contagiosa a que ninguém é imune".
Campo de Sangue
Autora: Dulce Maria Cardoso
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (266 págs.)
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