São Paulo, sábado, 28 de maio de 2005

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Policial às avessas desvenda crimes do belo e da solidão

LUCIANA ARAUJO
DA REDAÇÃO

Quatro mulheres numa sala. Uma reza, a outra acende um cigarro, a terceira pega seu batom, enquanto a quarta sai mais uma vez para andar. Elas não se cumprimentariam se se cruzassem na rua... Aguardam para prestar depoimento. Um homem que cometeu um crime é a única pista que liga essas vidas na história que a portuguesa Dulce Maria Cardoso tece no romance "Campo de Sangue" (Companhia das Letras), lançado no Brasil durante a 12ª Bienal Internacional do Rio.
O mistério que o livro traz, no entanto, não gira em torno do criminoso. Ele é identificado logo no primeiro parágrafo. O que não se sabe é quem é a vítima e qual foi o crime. Em suma, um policial às avessas, como concluíram os franceses, segundo Cardoso, 40.
"O que me espantou foi que durante três anos em Portugal ninguém falou de "Campo de Sangue" [lançado lá em 2002] como romance policial. Eu mesma nunca julguei que o que tinha escrito pudesse ser lido dessa maneira. E, de fato, há um crime e o mistério com relação à vítima", destaca ela.
Essa constatação aponta uma marca original no livro de estréia dessa portuguesa nascida em Trás-os-Montes, mas é pouco para concluir de que matéria ele trata, como Cardoso revela: "Devo confessar que esse crime é de todos os que acontecem no livro o que menos me inquieta. Interessam-me mais os não-crimes".
O perfil do protagonista, e a trama em si, mostra-se por meio de suas relações com as quatro mulheres: a mãe, a ex-mulher, a dona da pensão onde mora e a moça que espera um filho dele. "Para a mãe ele era um filho distante; para a ex-mulher, um caso perdido que ela podia sustentar; para a senhoria, um contabilista trabalhador; e para a rapariga, um amante promissor. Havia, pois, um homem que conseguira construir um tranqüilo mundo de mentira em que se movia de forma cronometradamente equilibrada. Até um dia. A necessidade do romance vinha de querer descobrir como seria esse dia e todos os outros que se lhe seguiriam", destaca.
Essas personagens reais na vida do homem, mas que cumprem papéis por ele inventados, entretanto, não são apenas vítimas de um universo que ele criara. Também são protagonistas de suas culpas, como Judas Iscariotes, a quem o título do romance alude. "Gosto de ler a Bíblia e uma vez deparei-me com a passagem em que se fala do terreno comprado com as moedas que Judas recebeu pela traição de Cristo, um terreno chamado Hakeldamá que quer dizer campo de sangue. Eu penso nesse lugar como uma metáfora e sinto que ele está por aí, por isso quero identificá-lo", diz Cardoso.
Assim, o que se lê é uma história de traições, na qual não há um fato específico que se caracterize como tal, mas um amontoado de ações e não-ações com as quais os personagens vão gastando o tempo, pagando o terreno onde se enterrará sua insanidade.
"O homem comete um crime, depois de trair-se a si mesmo, de ter desistido daquele que foi até certo ponto. Mas a traição mais grave será a de todos que assistem indiferentes ou distraídos a tudo, a traição lenta", analisa Cardoso.
Lentidão cronometrada. O tempo se impõem em "Campo de Sangue" a cada parágrafo. "O acerto de cada um com os outros é também o acerto com o tempo, o do relógio, mas também o tempo social. Um e outro estão, aliás, relacionados, já que a sociedade nos equilibra ocupando-nos o tempo, ocupando-nos as tais 24 horas", avalia a escritora. "Nesse sentido o tempo ocupado é um fator de equilíbrio. O processo por que o homem [o protagonista] vai passar, a manifestação do seu desajuste com os outros, passa também por um desgoverno em relação ao tempo. Ao perder o relógio, o homem perde o seu tempo e o controle da vida que criara. O próprio ritmo da história vai se alterando à medida que esse descontrole se instala", explica.
Num mundo que se equilibra em mentiras, quando se perde a referência do tempo, as maiores tentações são os não-crimes, que Cardoso citava acima, ou como está no livro: os pecados da beleza e da solidão, que levam à loucura.
Num romance em que a narrativa é minuciosamente trabalhada, não só no enredo, mas principalmente em sua forma, a construção de um universo ficcional também alude ao ato da escrita.
O escritor também não comete o pecado da solidão (criação) e o pecado da beleza (sua estética)? "Sim, o ato de criação é um ato individual e solitário através do qual se pretende reorganizar o mundo, perseguindo uma idéia de belo. Trata-se de uma ousadia transgressora não só em termos sociais mas também divinos, pois parece-me pertinente classificar como pecado a transgressão de querer imitar (corrigir?) o gesto divino do Criador. Nessa ousadia pode haver um pecado não classificado. Nesse sentido podemos encarar a literatura como um pecado", responde Cardoso.
A escritora, que atualmente mora em Lisboa, passou parte de sua infância em Angola, tendo regressado a Portugal em 1975. Seu segundo romance "Meus Sentimentos", ainda não tem previsão de lançamento no Brasil.
Atualmente prepara o terceiro, que se chamará "O Chão dos Pardais", sobre outro "pecado": "É sobre o poder como doença contagiosa a que ninguém é imune".


Campo de Sangue
Autora: Dulce Maria Cardoso
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (266 págs.)


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