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RODAPÉ
Moderno e modernista: senso, consenso e contra-senso
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Por caminhos diversos, duas
coletâneas de crítica -"Contra o Consenso" (ed. Barracuda, R$
35, 256 págs.), do jornalista Reinaldo Azevedo, e "Experiência Crítica" (ed. Cosacnaify, R$ 49, 382
págs.), do professor carioca de história da arte e cultura brasileira Ronaldo Brito- somadas a um intrincado ensaio de crítica cultural,
"Modernidade Singular: Ensaio
sobre a Ontologia do Presente"
(ed. Civilização Brasileira, 288
págs., R$ 32,90), de Fredric Jameson, remexem no entulho ideológico que se avoluma, hoje, em torno
da palavra "moderno", para além
do duplo fogo que, há muito, campeões do pós-moderno e defensores do pré-moderno vinham sustentando contra ela.
Trocada em miúdos, a tese de
Fredric Jameson sustenta que a
conversão do moderno em palavra
de ordem e sua vizinhança perigosa com um processo monolítico de
modernização forçada, primo-irmão da globalização, anulam a dimensão utópica que o acompanhava. No Brasil, o gesto de ruptura e de gosto pela novidade ficou
imobilizado na celebração da mítica Semana de Arte Moderna de 22:
lá está, emblemático, o "jeitinho
moderno brasileiro", para falar como Ronaldo Brito, ancorando o
novo, paradoxalmente, no passado, erigido em fetiche e fórmula
reificada.
Não se trata aqui de desqualificação bairrista -movimento simpático, porém paulista- ou colonizada do modernismo local, reduzido, volta e meia, com postiça iconoclastia, a coisa pouca e nossa, insignificante, no "annus mirabilis"
que viu surgir "The Waste Land" (a
terra devastada), de T.S. Eliot
(1888-1965), e "Ulysses", de James
Joyce (1882-1941). O autor reconhece a importância e a estratégia
do movimento: "O Brasil culto,
muito compreensivelmente, aparecia como uma paisagem pequena aos olhos dos pioneiros modernistas, uma idéia de poucos que se
lutava para ampliar a todos. Por isso cabia em vastas sínteses estéticas
que talvez aspirassem a uma eficácia mítica: cumpriam nosso rito de
passagem para a modernidade".
Mas o culto cívico à Semana sacrificava as várias e complexas versões individuais que a expressão
moderna com traços locais poderia
assumir em nome da "velocidade
moderna capaz de cifrar o Brasil
em imagens prontamente acessíveis e comunicáveis": Lasar Segall
(1891-1957), Alberto Guignard
(1896-1962) e Oswaldo Goeldi
(1895-1961) acabam imolados no
altar de Tarsila do Amaral (1886-1973), Cândido Portinari (1903-1962) e Victor Brecheret (1894-1955). "A obsessão por uma semana ameaça nos colocar à margem
do tempo".
Na coletânea recém-editada pela
Cosacnaify, a preocupação com a
atualização do moderno aflora numa série de escritos de ocasião dispersos no tempo -"O Moderno e
o Contemporâneo: O Novo e o Outro Novo" (1980), "Pós, Pré, Quase
ou Anti?" (1983), "O Jeitinho Moderno Brasileiro" (1993) ou no texto dedicado a Guignard, "Só
Olhar" (1982)-, numa recorrência sintomática tanto da importância da ferida considerada, como da
consistência da reflexão dedicada a
ela.
Em "Contra o Consenso", Azevedo também investe contra a atribuição do monopólio do moderno
aos organizadores, participantes e
satélites da Semana de 22, responsabilidade, segundo ele, da crítica
sociologizante e uspiana (em tempo: sem monopolizar a carapuça,
admito que sou professor de teoria
literária naquela universidade e,
não bastasse, sociólogo da casa,
por formação).
Seja cuidando da obra de grandes autores alijados do cânone modernista por caberem mal no figurino estrito deste moderno sinônimo da militância modernista de
primeira hora (como Monteiro Lobato e Ariano Suassuna), seja nas
estocadas contra as figuras de proa
do movimento e seus descendentes diretos -os Andrade (Mário e
Oswald) na linha de frente, Drummond logo a seguir-, Azevedo reforça, por via indireta, a impressão
de que os contornos do moderno
no Brasil estão longe de serem
exaustivamente conhecidos.
Mesmo quando, na ânsia de contrariar o consenso, seu ânimo polemista beira o contra-senso (caso da
subscrição, fora de contexto, do
juízo militante de Mário Faustino
sobre o poeta mineiro), tem o mérito de mostrar que obras como as
de Murilo Mendes e Jorge de Lima,
de Cecília Meireles e do próprio
Faustino ainda esperam para compor o mosaico do moderno entre
nós, longe de ser um pacote bem
digerido.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
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