São Paulo, sábado, 28 de maio de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Moderno e modernista: senso, consenso e contra-senso

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Por caminhos diversos, duas coletâneas de crítica -"Contra o Consenso" (ed. Barracuda, R$ 35, 256 págs.), do jornalista Reinaldo Azevedo, e "Experiência Crítica" (ed. Cosacnaify, R$ 49, 382 págs.), do professor carioca de história da arte e cultura brasileira Ronaldo Brito- somadas a um intrincado ensaio de crítica cultural, "Modernidade Singular: Ensaio sobre a Ontologia do Presente" (ed. Civilização Brasileira, 288 págs., R$ 32,90), de Fredric Jameson, remexem no entulho ideológico que se avoluma, hoje, em torno da palavra "moderno", para além do duplo fogo que, há muito, campeões do pós-moderno e defensores do pré-moderno vinham sustentando contra ela.
Trocada em miúdos, a tese de Fredric Jameson sustenta que a conversão do moderno em palavra de ordem e sua vizinhança perigosa com um processo monolítico de modernização forçada, primo-irmão da globalização, anulam a dimensão utópica que o acompanhava. No Brasil, o gesto de ruptura e de gosto pela novidade ficou imobilizado na celebração da mítica Semana de Arte Moderna de 22: lá está, emblemático, o "jeitinho moderno brasileiro", para falar como Ronaldo Brito, ancorando o novo, paradoxalmente, no passado, erigido em fetiche e fórmula reificada.
Não se trata aqui de desqualificação bairrista -movimento simpático, porém paulista- ou colonizada do modernismo local, reduzido, volta e meia, com postiça iconoclastia, a coisa pouca e nossa, insignificante, no "annus mirabilis" que viu surgir "The Waste Land" (a terra devastada), de T.S. Eliot (1888-1965), e "Ulysses", de James Joyce (1882-1941). O autor reconhece a importância e a estratégia do movimento: "O Brasil culto, muito compreensivelmente, aparecia como uma paisagem pequena aos olhos dos pioneiros modernistas, uma idéia de poucos que se lutava para ampliar a todos. Por isso cabia em vastas sínteses estéticas que talvez aspirassem a uma eficácia mítica: cumpriam nosso rito de passagem para a modernidade".
Mas o culto cívico à Semana sacrificava as várias e complexas versões individuais que a expressão moderna com traços locais poderia assumir em nome da "velocidade moderna capaz de cifrar o Brasil em imagens prontamente acessíveis e comunicáveis": Lasar Segall (1891-1957), Alberto Guignard (1896-1962) e Oswaldo Goeldi (1895-1961) acabam imolados no altar de Tarsila do Amaral (1886-1973), Cândido Portinari (1903-1962) e Victor Brecheret (1894-1955). "A obsessão por uma semana ameaça nos colocar à margem do tempo".
Na coletânea recém-editada pela Cosacnaify, a preocupação com a atualização do moderno aflora numa série de escritos de ocasião dispersos no tempo -"O Moderno e o Contemporâneo: O Novo e o Outro Novo" (1980), "Pós, Pré, Quase ou Anti?" (1983), "O Jeitinho Moderno Brasileiro" (1993) ou no texto dedicado a Guignard, "Só Olhar" (1982)-, numa recorrência sintomática tanto da importância da ferida considerada, como da consistência da reflexão dedicada a ela.
Em "Contra o Consenso", Azevedo também investe contra a atribuição do monopólio do moderno aos organizadores, participantes e satélites da Semana de 22, responsabilidade, segundo ele, da crítica sociologizante e uspiana (em tempo: sem monopolizar a carapuça, admito que sou professor de teoria literária naquela universidade e, não bastasse, sociólogo da casa, por formação).
Seja cuidando da obra de grandes autores alijados do cânone modernista por caberem mal no figurino estrito deste moderno sinônimo da militância modernista de primeira hora (como Monteiro Lobato e Ariano Suassuna), seja nas estocadas contra as figuras de proa do movimento e seus descendentes diretos -os Andrade (Mário e Oswald) na linha de frente, Drummond logo a seguir-, Azevedo reforça, por via indireta, a impressão de que os contornos do moderno no Brasil estão longe de serem exaustivamente conhecidos.
Mesmo quando, na ânsia de contrariar o consenso, seu ânimo polemista beira o contra-senso (caso da subscrição, fora de contexto, do juízo militante de Mário Faustino sobre o poeta mineiro), tem o mérito de mostrar que obras como as de Murilo Mendes e Jorge de Lima, de Cecília Meireles e do próprio Faustino ainda esperam para compor o mosaico do moderno entre nós, longe de ser um pacote bem digerido.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Texto Anterior: Policial às avessas desvenda crimes do belo e da solidão
Próximo Texto: Vitrine brasileira - Ficção
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.