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NELSON ASCHER
A roda quadrada
O que os franceses fizeram nas eleições foi lembrar ao Estado qual sua função primordial
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NICOLAS Sarkozy, o novo presidente da França, deve sua
eleição em boa parte à promessa de que adotaria uma linha dura diante da criminalidade e da imigração ilegal, temas, aliás, correlacionados, pois os imigrantes estão
sobre-representados no crime e nas
prisões. Além disso, escancarar as
fronteiras do país rende dividendos
não a quem queira produzir, integrar-se ou precise se refugiar de perseguições, mas aos contrabandistas
de gente e sua respectiva clientela.
Se comparados com os números
brasileiros (ou pior ainda, com os do
paraíso proto-socialista de Chávez),
os da criminalidade na Europa ocidental parecem beirar o ideal em se
ainda é possível passear à noite pelas
ruas e avenidas parisienses (bem
menos, porém, pelos subúrbios não-turísticos) e sobreviver para contar a
história, também é verdade que a situação tem piorado sistematicamente nas últimas décadas. E tal
piora coincide com a adoção cada
vez mais ampla de uma filosofia aparentemente generosa e liberal segundo a qual o crime é ou uma doença individual curável cuja maior vítima seria o criminoso, ou o efeito colateral de imperfeições sociais capazes de serem solucionadas com mais
gastos públicos.
Em seu cerne, a concepção acima
nega que o criminoso seja pessoalmente responsável por seus atos,
que estes possam ter decorrido de
uma escolha consciente. Tendo isso
em vista, puni-lo, além de injusto, de
nada adiantaria, enquanto detê-lo,
nem que fosse para proteger dele os
demais cidadãos, equivaleria a vitimizá-lo novamente e a negar-lhe
seus direitos humanos elementares.
(E é melhor deixar de lado os lunáticos que vêem nos delinqüentes tanto "rebeldes primitivos" como a vanguarda de uma futura revolução.)
Este modo de encarar o crime
coincide com a visão que prevalece
seja no governo brasileiro, seja entre
nossas elites liberais. Julga-se, aqui
também, que o problema só se resolverá quando forem atacadas suas
causas, tais como exclusão social,
desigualdade econômica, falta de escolaridade etc. E, dado que as causas
são profundas, estruturais, não há
como pensar em equacioná-las a
curto prazo. São as providências tomadas pelo Estado redistributivo
que, daqui a dois ou três decênios,
instaurarão uma nova ordem na
qual nem sequer passará pela cabeça
de alguém fazer mal ao próximo.
A diferença entre Brasil e França é
que lá o Estado redistributivo se instalou há mais de 50 anos. As promessas apresentadas hoje aqui lá foram feitas logo depois da Segunda
Guerra. E os eleitores tiveram tempo suficiente para verificar se o modelo funcionava. Seu veredicto é o de que, se durante períodos de crescimento econômico a criminalidade
de fato se reduziu, ela voltou a crescer com a estagnação e o desemprego. Estes, por sua vez, resultam do modelo socioeconômico adotado
que se encontra entre as causas indiretas da insegurança crescente.
O que os franceses fizeram nas recentes eleições foi lembrar ao Estado qual sua função primordial. Este,
afinal, legitima-se classicamente como o defensor dos cidadãos inocentes perante predadores diversos. Já
o Estado redistributivo busca sua legitimidade, bom, na redistribuição
de renda, a panacéia que, de acordo
com seus paladinos, remediaria todos os males. Esse tipo de Estado
não descuida de reservar para si e
seus associados uma comissão pelos
serviços prestados e, mais nocivo
ainda, tende, sempre com as melhores intenções, a crescer, "responsabilizando-se" por funções antes desempenhadas pela iniciativa privada
ou pela sociedade civil.
A essa altura, gerações de políticos
e funcionários públicos gauleses
acreditavam possuir um eleitorado
cativo graças à criação de um sistema de saúde meio arruinado, de
uma rede escolar menos e menos
operante e, sobretudo, de empregos
improdutivos no setor público. Mas,
como não desapareceu, o crime
tampouco deixou de preocupar os
eleitores, porque nenhum eleitorado abre mão de condições mínimas
de segurança. O que de extra o governo ofereça pode, talvez, agradar a
este ou aquele setor, mas reivindicações básicas não são esquecidas.
Embora não existam em princípio
vínculos lógicos ou necessários entre a defesa do Estado redistributivo
e a visão "Poliana" da criminalidade,
na prática ambas derivam de certa
interpretação da natureza humana,
uma interpretação que se caracteriza por ser impermeável aos "feedbacks" da realidade empírica.
Daí que o Brasil esteja condenado
a não aprender nada com os fracassos alheios e a reinventar, com meio
século de defasagem, a roda quadrada na qual nem os franceses acreditam mais.
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