São Paulo, quarta-feira, 28 de maio de 2008

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Com obras inéditas, Nuno Ramos volta a expor a tragédia cotidiana

Um dos principais artistas brasileiros tem mostra no CCBB de Brasília até julho

SILAS MARTÍ
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

Estavam atrasados os urubus. "Apareceram uns aqui, e me deu uma vontade louca de botar os bichos para dentro", diz Nuno Ramos. Depois de levar jumentos ao Instituto Tomie Ohtake, um dos artistas mais respeitados do país acaba de montar um viveiro tétrico no Centro Cultural Banco do Brasil da capital federal. "Os burrinhos me abriram muitos caminhos, mas esta é uma obra diferente", diz Ramos.
"Bandeira Branca" é a peça-chave de sua nova individual aberta ontem para o público. Três urubus, que chegaram a Brasília horas antes do vernissage, vão viver entre caixas acústicas de vidro e três túmulos de areia socada cobertos com pedras negras.
Dos alto-falantes, saem três vozes distintas, entoando morte, paz e violência. Mariana Aydar canta "Carcará"; Arnaldo Antunes, "Bandeira Branca"; e a sambista Dona Inah, "Acalanto", de Dorival Caymmi.
Mas nada em Nuno Ramos é tão simples. A epopéia trágica tem na base um "código de vitalidade". Os versos se alternam cantados no tempo dos recordes de corrida: 100 m rasos, 200 m, até completar uma maratona. "Quero tocar na morte e na vida. É minha estratégia."
Se em "Bandeira Branca" o artista homenageia com 25 toneladas de areia preta as texturas sombrias do gravurista Oswaldo Goeldi, dá duas versões dissonantes da morte nas galerias internas do CCBB: uma ópera bufa e um rito fúnebre.
"Soap Opera" são dois muros de sabão. Na ponta de cada um deles, uma caixa de som. As vozes de um tenor e uma soprano se alternam num melodrama risonho sobre o atropelamento de dois cachorros.
Ramos chegou a congelar um cão empalhado, que ficaria junto das estruturas de sabão da obra, mas desistiu da idéia. "Seria muito literal, tiraria a energia do trabalho", concluiu. Menos literal, mais austera e geométrica, "Monólogo para um Cachorro Morto", obra que ocupa sozinha outra sala do CCBB, faz contraponto à ópera de sabão. São cinco lápides de mármore, iluminadas por trás.
Cada uma traz gravados trechos de um texto do artista em homenagem ao cão. Na última placa de mármore, um vídeo mostra Ramos com um cachorro que encontrou morto à beira da estrada: ele leva um rádio até a carcaça do animal e toca uma gravação do texto.
"O cachorro é um morto cotidiano, parece que está um grau de cidadania abaixo, mas não muito abaixo, dos excluídos", diz Ramos. "É uma morte disseminada, está por toda parte."

Samba e letras
Ramos tenta enfrentar de cara essa tragédia cotidiana recorrendo ao samba e à literatura. As obras desta nova exposição retomam de forma consistente os experimentos recentes do artista na tentativa de conferir matéria à palavra, seja gravando versos na superfície da pedra, seja com o registro de canto e fala. É óbvia a conexão aqui com o teatro. Os trabalhos todos operam na lógica da performance, criam expectativa e precisam de uma fagulha para entrar em ação.
Para tanto, os versos de Nelson Cavaquinho, Cartola e Carlos Drummond de Andrade servem de estrutura e revestem de uma brasilidade assumida os esforços de Ramos. "Tem uma coisa muito brasileira no que eu faço", diz o artista, que se coloca na posição de "antivírus num mundo que padroniza, comprime expectativas".
É contra essa compressão, na potência do acaso, que Ramos encontra suas armas. A vida do artista pode parecer muito com a do jogador de futebol. Uma tela de Paulo Pasta equivaleria a um drible de Robinho, nas palavras de Ramos, que também escreveu sobre o jogo mais brasileiro de todos.
Seus ensaios são citados por José Miguel Wisnik em "Veneno Remédio", livro que dedicou ao futebol. "Arte é um jogo que cada um joga", diz Ramos, lembrando que "uma partida que acaba em zero a zero pode muito bem ter sido um jogaço."


NUNO RAMOS
Quando:
de ter. a dom., das 9h às 21h; até 20/7
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil (SCES Trecho 2, lote 22, Brasília, tel. 0/xx/61/3310-7087; classificação: 18 anos na galeria 1, livre nas demais)
Quanto: entrada franca

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