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CINEMA - "HILARY E JACKIE"
Fidelidade aos fatos não é o mais importante
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
O destino das irmãs musicistas
Hilary e Jackie selou-se num episódio da infância de ambas. Convidada a tocar na BBC de Londres, a
flautista Hilary, dois anos mais velha e preferida da mãe, insiste para
que sua irmã menor, a violoncelista Jackie, participe do concerto.
Hilary faz uma apresentação de
sucesso, enquanto Jackie fracassa e
é repreendida pela mãe, que a
compara com a irmã bem-sucedida. A partir daí, Jackie vai transferir para a já intensa relação de
companheirismo e cumplicidade
com Hilary toda a rejeição da mãe.
A frustração despertará o gênio.
Para ser igual à irmã a quem ama
-e que é o objeto do amor da
mãe-, Jackie passa a estudar obsessivamente seu instrumento, o
celo. Em pouco tempo, a situação
se inverte. Em outro concerto, Jackie é ovacionada pela platéia, empalidecendo para sempre a atuação da flautista Hilary.
Quando Hilary e Jackie se tornam adultas, a vida de cada uma
ganha rumos distintos. Hilary (em
ótimo desempenho de Rachel Griffiths) sublima a sua carreira na
flauta. Encontra felicidade no casamento e nos filhos.
Jackie, por sua vez, entrega-se cegamente a seu destino de virtuose
célebre, de vida agitada e internacional, apenas para descobrir que
seu desejo de identificação com a
irmã é um sentimento contraditório, que beira a simbiose.
Ela quer a vida e o marido de Hilary, ressente-se de uma solidão
que nem o casamento com o também músico Daniel Barenboim
(James Frain) seria capaz de curar.
É esse nó de leitura freudiana que
o estreante diretor Anand Tucker
resolveu desatar em seu "Hilary e
Jackie", baseado na biografia da
violoncelista inglesa Jacqueline du
Pré (1945-1987).
A personagem é vivida, em tocante interpretação, pela inglesa
Emily Watson, indicada ao Oscar,
e que passou meses estudando celo
para fazer o papel.
Du Pré, que teve sua capacidade
técnica e seu calor romântico associados principalmente à execução
do "Concerto para Violoncelo", de
Elgar (1919), morreu precocemente, de esclerose múltipla. A biografia em que se baseia o filme de Tucker ("A Genius in the Family" - Um
Gênio em Família) foi escrita pela
própria irmã, Hilary du Pré e pelo
irmão Piers.
Filme intenso, cheio da nobreza e
da melancolia da música do violoncelo, com excelente desempenho de atores (inclusive das crianças), também acerta na linha narrativa escolhida.
O roteiro de Frank Cottrell Boyce
divide a estrutura narrativa do filme em duas. A história é contada,
primeiro, do ponto de vista de Hilary e, depois, do ponto de vista de
Jackie. É uma maneira de fazer o
espectador ver com isenção a influência de fatores idênticos moldando as personalidades e as vidas
das irmãs, cuja relação é uma mistura de amor e rivalidade.
O filme de Anand Tucker também poderia se chamar o caso clínico de Jacqueline du Pré. Na ótica
freudiana, a esclerose múltipla da
violoncelista poderia ser classificada como uma "histeria de angústia", cujos sintomas mais comuns
são as paralisias motoras, as contraturas, ações ou descargas involuntárias, dores e alucinações.
No ápice da doença, as convulsões da personagem seriam, como
diria Freud, a expressão de uma
explosão de afeto que foi retirada
do controle normal do ego.
A certa altura, Jackie passa a rejeitar o violoncelo, a desenvolver
por ele uma estranha relação de
amor e ódio. Sente-se uma "macaca amestrada", tenta punir a mãe e
a família com os pacotes de roupa
suja que manda para casa de suas
viagens internacionais. Mesmo seu
casamento com um judeu é visto
como uma provocação aos pais.
Não é à toa que a abertura do filme é um sonho da infância de Jackie, outro material de análise psicanalítica. A fadiga paralisante que
vai tomando conta da musicista,
ou mesmo sua relação erotizada
com o violoncelo -parece um falo
gigante entre suas pernas- seria,
por fim, o que a psicanálise chama
de "inibição neurótica", uma espécie de autopunição.
Se o filme é ou não fiel aos fatos
biográficos é menos importante do
que a leitura envolvente que ele faz
de uma história de renúncias e entregas, de paixão e vigor.
Avaliação:
Filme: Hilary e Jackie
Produção: Inglaterra, 1998
Direção: Anand Tucker
Com: Emily Watson, Rachel Griffiths
Quando: a partir de hoje no Belas Artes
-Oscar Niemeyer, Cinearte 2 e SP Market 5
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