São Paulo, Sexta-feira, 28 de Maio de 1999
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CINEMA - "HILARY E JACKIE"
Fidelidade aos fatos não é o mais importante

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

O destino das irmãs musicistas Hilary e Jackie selou-se num episódio da infância de ambas. Convidada a tocar na BBC de Londres, a flautista Hilary, dois anos mais velha e preferida da mãe, insiste para que sua irmã menor, a violoncelista Jackie, participe do concerto.
Hilary faz uma apresentação de sucesso, enquanto Jackie fracassa e é repreendida pela mãe, que a compara com a irmã bem-sucedida. A partir daí, Jackie vai transferir para a já intensa relação de companheirismo e cumplicidade com Hilary toda a rejeição da mãe.
A frustração despertará o gênio. Para ser igual à irmã a quem ama -e que é o objeto do amor da mãe-, Jackie passa a estudar obsessivamente seu instrumento, o celo. Em pouco tempo, a situação se inverte. Em outro concerto, Jackie é ovacionada pela platéia, empalidecendo para sempre a atuação da flautista Hilary.
Quando Hilary e Jackie se tornam adultas, a vida de cada uma ganha rumos distintos. Hilary (em ótimo desempenho de Rachel Griffiths) sublima a sua carreira na flauta. Encontra felicidade no casamento e nos filhos.
Jackie, por sua vez, entrega-se cegamente a seu destino de virtuose célebre, de vida agitada e internacional, apenas para descobrir que seu desejo de identificação com a irmã é um sentimento contraditório, que beira a simbiose.
Ela quer a vida e o marido de Hilary, ressente-se de uma solidão que nem o casamento com o também músico Daniel Barenboim (James Frain) seria capaz de curar.
É esse nó de leitura freudiana que o estreante diretor Anand Tucker resolveu desatar em seu "Hilary e Jackie", baseado na biografia da violoncelista inglesa Jacqueline du Pré (1945-1987).
A personagem é vivida, em tocante interpretação, pela inglesa Emily Watson, indicada ao Oscar, e que passou meses estudando celo para fazer o papel.
Du Pré, que teve sua capacidade técnica e seu calor romântico associados principalmente à execução do "Concerto para Violoncelo", de Elgar (1919), morreu precocemente, de esclerose múltipla. A biografia em que se baseia o filme de Tucker ("A Genius in the Family" - Um Gênio em Família) foi escrita pela própria irmã, Hilary du Pré e pelo irmão Piers.
Filme intenso, cheio da nobreza e da melancolia da música do violoncelo, com excelente desempenho de atores (inclusive das crianças), também acerta na linha narrativa escolhida.
O roteiro de Frank Cottrell Boyce divide a estrutura narrativa do filme em duas. A história é contada, primeiro, do ponto de vista de Hilary e, depois, do ponto de vista de Jackie. É uma maneira de fazer o espectador ver com isenção a influência de fatores idênticos moldando as personalidades e as vidas das irmãs, cuja relação é uma mistura de amor e rivalidade.
O filme de Anand Tucker também poderia se chamar o caso clínico de Jacqueline du Pré. Na ótica freudiana, a esclerose múltipla da violoncelista poderia ser classificada como uma "histeria de angústia", cujos sintomas mais comuns são as paralisias motoras, as contraturas, ações ou descargas involuntárias, dores e alucinações.
No ápice da doença, as convulsões da personagem seriam, como diria Freud, a expressão de uma explosão de afeto que foi retirada do controle normal do ego.
A certa altura, Jackie passa a rejeitar o violoncelo, a desenvolver por ele uma estranha relação de amor e ódio. Sente-se uma "macaca amestrada", tenta punir a mãe e a família com os pacotes de roupa suja que manda para casa de suas viagens internacionais. Mesmo seu casamento com um judeu é visto como uma provocação aos pais.
Não é à toa que a abertura do filme é um sonho da infância de Jackie, outro material de análise psicanalítica. A fadiga paralisante que vai tomando conta da musicista, ou mesmo sua relação erotizada com o violoncelo -parece um falo gigante entre suas pernas- seria, por fim, o que a psicanálise chama de "inibição neurótica", uma espécie de autopunição.
Se o filme é ou não fiel aos fatos biográficos é menos importante do que a leitura envolvente que ele faz de uma história de renúncias e entregas, de paixão e vigor.


Avaliação:


Filme: Hilary e Jackie
Produção: Inglaterra, 1998 Direção: Anand Tucker
Com: Emily Watson, Rachel Griffiths
Quando: a partir de hoje no Belas Artes -Oscar Niemeyer, Cinearte 2 e SP Market 5


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