São Paulo, Sexta-feira, 28 de Maio de 1999
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A BIOGRAFIA
Acerto de contas familiar

JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

Se fosse peça de ficção, "Hilary e Jackie" cairia, por falta de brilho, na vala comum da filmografia britânica.
Mas pretende ser um relato biográfico. Torna-se, por isso, um filme mesquinho, no qual a violoncelista Jacqueline du Pré (1945-1987) é postumamente vítima de um calunioso acerto de contas perpetrado por familiares.
Vejamos o essencial. A música erudita é um campo em que os profissionais valem pelo talento que exprimem em récitas ao vivo ou em estúdios de gravação.
Não são personagens mundanos. Inexistem revistas especializadas em fofocas sobre a vida social ou amorosa das sopranos, maestros ou trompistas. É diferente de roqueiros ou atrizes de Hollywood.
Jacqueline du Pré foi um fenômeno de brilho intenso e fugaz na história musical inglesa. Uma esclerose múltipla que a mataria aos 42 anos foi diagnosticada quando ela tinha apenas 28.
Deixou uma discografia pequena. Conseguiu gravar duas das seis "Suítes" para violoncelo de Bach. Mergulhou no essencial do repertório para seu instrumento, com Elgar, Haendel, Lalo, Saint-Saens, Dvorak ou Schumann.
Não teve tempo suficiente para se tornar uma das grandes violoncelistas do século. Talvez chegasse lá. Era de uma incrível musicalidade. Tocava com o coração e com o fígado. Demonstrou, por exemplo, um desprendimento sensual nas cinco "Sonatas" de Beethoven.
De informação mundana, sabia-se apenas que aos 23 anos casara-se com o pianista e maestro argentino -naturalizado israelense-Daniel Barenboim, atual diretor musical da Sinfônica de Chicago e da Staatsoper de Berlim.
Jackie du Pré estava morta havia sete anos quando sua irmã e de certo modo rival, Hilary, decidiu exorcizar em público os fantasmas que uma boa psicoterapia teria mantido na esfera privada. Decidiu escrever um livro, que, antes mesmo de ser publicado, transformou-se em roteiro para o filme dirigido por Anand Tucker.
Ex-flautista, Hilary tinha ciúme artístico e amoroso da irmã. Não prosperou na música e ainda teria presenciado, passivamente, uma furtiva aventura sexual de Jackie com seu marido. A Jackie pintada pelo filme é mesquinha, mitômana, erotômana e boquirrota.
Tem-se, é claro, uma única versão da história, a de Hilary. Jacqueline está morta e não poderia fornecer -se eventualmente entrasse nesse jogo- a sua.
No entanto, são tantas as imprecisões biográficas que se poderia questionar se o miolo da mágoa de Hilary -Jacqueline ter traído Barenboim ao frequentar a cama do cunhado- não passa de leviana invenção ou "liberdade poética".
Uma imprecisão importante: Jacqueline du Pré foi aluna de Rostropovich, em Moscou, entre janeiro e maio de 1966. O filme reduz essa relação a uma conversa desencontrada de alguns minutos.
Outra, secundária: não foi o Stradivarius Davidoff (1712) que ela recebeu de presente, ao deixar o conservatório. Foi em verdade um outro violoncelo Stradivarius (1673), que não tinha nome e se chama hoje, justamente, Jacqueline du Pré. Outra prova de que Jackie foi bem mais generosa que egoísta: imobilizada pela moléstia, presenteou seu Davidoff a Yo-Yo Ma, hoje um dos grandes violoncelistas na ativa.
Mesmo que o salpicar de pequenas infâmias de Hilary fosse ancorado em verdades, isso em nada modificaria a técnica e a intensidade dramática de cada nota gravada por Jacqueline.
É por sua música e não por seus atos que ela só morrerá quando suas gravações perderem todos os admiradores.


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