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A BIOGRAFIA
Acerto de contas familiar
JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local
Se fosse peça de ficção, "Hilary e Jackie" cairia, por falta de
brilho, na vala comum da filmografia britânica.
Mas pretende ser um relato
biográfico. Torna-se, por isso,
um filme mesquinho, no qual a
violoncelista Jacqueline du Pré
(1945-1987) é postumamente
vítima de um calunioso acerto
de contas perpetrado por familiares.
Vejamos o essencial. A música erudita é um campo em que
os profissionais valem pelo talento que exprimem em récitas
ao vivo ou em estúdios de gravação.
Não são personagens mundanos. Inexistem revistas especializadas em fofocas sobre a vida
social ou amorosa das sopranos, maestros ou trompistas. É
diferente de roqueiros ou atrizes de Hollywood.
Jacqueline du Pré foi um fenômeno de brilho intenso e fugaz na história musical inglesa.
Uma esclerose múltipla que a
mataria aos 42 anos foi diagnosticada quando ela tinha
apenas 28.
Deixou uma discografia pequena. Conseguiu gravar duas
das seis "Suítes" para violoncelo de Bach. Mergulhou no essencial do repertório para seu
instrumento, com Elgar, Haendel, Lalo, Saint-Saens, Dvorak
ou Schumann.
Não teve tempo suficiente para se tornar uma das grandes
violoncelistas do século. Talvez
chegasse lá. Era de uma incrível
musicalidade. Tocava com o
coração e com o fígado. Demonstrou, por exemplo, um
desprendimento sensual nas
cinco "Sonatas" de Beethoven.
De informação mundana, sabia-se apenas que aos 23 anos
casara-se com o pianista e
maestro argentino -naturalizado israelense-Daniel Barenboim, atual diretor musical
da Sinfônica de Chicago e da
Staatsoper de Berlim.
Jackie du Pré estava morta
havia sete anos quando sua irmã e de certo modo rival, Hilary, decidiu exorcizar em público os fantasmas que uma
boa psicoterapia teria mantido
na esfera privada. Decidiu escrever um livro, que, antes
mesmo de ser publicado, transformou-se em roteiro para o
filme dirigido por Anand Tucker.
Ex-flautista, Hilary tinha ciúme artístico e amoroso da irmã.
Não prosperou na música e
ainda teria presenciado, passivamente, uma furtiva aventura
sexual de Jackie com seu marido. A Jackie pintada pelo filme
é mesquinha, mitômana, erotômana e boquirrota.
Tem-se, é claro, uma única
versão da história, a de Hilary.
Jacqueline está morta e não poderia fornecer -se eventualmente entrasse nesse jogo- a
sua.
No entanto, são tantas as imprecisões biográficas que se poderia questionar se o miolo da
mágoa de Hilary -Jacqueline
ter traído Barenboim ao frequentar a cama do cunhado-
não passa de leviana invenção
ou "liberdade poética".
Uma imprecisão importante:
Jacqueline du Pré foi aluna de
Rostropovich, em Moscou, entre janeiro e maio de 1966. O filme reduz essa relação a uma
conversa desencontrada de alguns minutos.
Outra, secundária: não foi o
Stradivarius Davidoff (1712)
que ela recebeu de presente, ao
deixar o conservatório. Foi em
verdade um outro violoncelo
Stradivarius (1673), que não tinha nome e se chama hoje, justamente, Jacqueline du Pré.
Outra prova de que Jackie foi
bem mais generosa que egoísta:
imobilizada pela moléstia, presenteou seu Davidoff a Yo-Yo
Ma, hoje um dos grandes violoncelistas na ativa.
Mesmo que o salpicar de pequenas infâmias de Hilary fosse ancorado em verdades, isso
em nada modificaria a técnica e
a intensidade dramática de cada nota gravada por Jacqueline.
É por sua música e não por
seus atos que ela só morrerá
quando suas gravações perderem todos os admiradores.
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