São Paulo, quarta-feira, 28 de junho de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO
No futuro próximo, a verdade tenderá a desaparecer

Ainda não cheguei à famosa "terceira idade". Aliás, que nome incrível esse. Sua intenção neutra, fundando-se numa contagem abstrata do tempo, é paradoxal. Pois quem é velho vive da contagem concreta dos anos, dos feitos, dos casos, dos números.
"Foi em 1978? Ou em 1987?" Confunde-se a quantidade de casamentos, de netos, de pecados, de viagens. Tudo se embaralha. É como se precisássemos não só de óculos para ler jornal, mas também para ler o próprio passado. Lentes para perto e para longe.
Há também uma coisa vaga nesse termo, "terceira idade", que remete aos "conceitos" que os professores usam para dar notas no boletim escolar: A, B, C... Prefiro (estou ficando velho) as notas que vão de zero a dez, de preferência com frações de 0,25 -essas frações começam a ficar importantes.
Por que só três idades? Minha nota, não sei, deve estar entre uns quatro e uns cinco e meio na vida, mas sinto, desde já (e aqui entro, com passos hesitantes, no tema deste artigo), que o mundo está ficando (e esta é uma frase de velho) complicado demais para mim.
Começo a estranhar, por exemplo, os banheiros públicos. Frequento-os (deve ser a próstata) mais do que gostaria. Já não há toalhas, torneiras, sabonetes, papéis higiênicos como antigamente. Quando quero enxugar as mãos, surge um aparelho esquisito, capaz de soprar todos os ventos do inferno sobre minhas duas palmas pecadoras. Um sopro quente, seco e descabelador atinge-as como que por acessos eletrônicos; a operação demora mais do que o normal e exige de mim uma persistência e um capricho de que não sou capaz.
Ou então há um depósito de toalhas de papel, que avisa, desde logo, que duas folhas -máxima absorção- bastam para enxugar as mãos da gente. Por birra, uso umas quatro, pelo menos.
A economia também se aplica às torneiras e ao sabonete. Antes, abrir a torneira era um ato simples; exigia apenas que se girasse a rosa-dos-ventos de metal, cega e solícita, até chegar ao sudoeste, de onde jorrava a água. Agora, não. Temos de premir uma válvula, como a de descarga, mas menos generosa, à espera de um jato breve de água que nos limpe.
Mais breve ainda será a frequentação do sabonete. Havia antes os pendurados no ar com correntinhas, exigindo afagos constrangidos do usuário. Hoje há máquinas que dispõem pequenas doses de sabonete líquido como cuspes anti-sépticos.
A lógica desses dispositivos é dupla. De um lado, economia -de água, de papel, de sabonete. De outro lado, assepsia e despersonalização. A toalha de pano é nojenta, fiquemos com a descartável. Melhor: fiquemos sem toalha nenhuma, o secador de ar quente rejeita qualquer contato.
Ora, a Aids não se transmite dessa forma. Assusto-me diante do medo que todos esses aparelhos revelam, ao corporal, ao físico. Não é à toa que tantas obras de arte moderna apelam "à questão do corpo", borrando de sangue e vísceras as salas de exposição. Mais do que o sexo, é o corpo que constitui o grande objeto de repressão nos dias de hoje.
Tanto que se procura, a todo custo, domesticá-lo nas academias. A esse propósito, vi por alto outra coisa assustadora: o caderno que a Folha publicou no domingo, sobre o futuro do esporte.
Uma bola de futebol será dotada de emissores infravermelhos capazes de dirigir o foco das câmeras de TV. Raquetes terão micromotores para adaptar o ângulo de impacto da bolinha do modo mais mortífero. Comecei a achar que tanta eficiência é horrível.
Pois até mesmo um sedentário como eu será capaz de jogar bem uma partida de tênis. No limite, Guga será dispensável. Por que não substituir os pilotos de Fórmula 1 por robôs? O que sobra ao ser humano?
Enquanto isso, a revista "Superinteressante" mostra a humanização dos robôs. Há alguns, encarregados de tarefas domésticas, que se assemelham à velha Rosita do desenho "Os Jetsons".
O futuro começa a ficar como pensávamos que ele fosse. Cachorros de lata já estão à venda no Japão. Rosita está entre nós. Há água em Marte. Pior que tudo, leio na "Veja" que determinados dispositivos permitem acoplar imagens falsas a falas verdadeiras -e vice-versa- em qualquer documento gravado em vídeo, de modo que poderemos ver, em breve, Hitler falando contra o Holocausto e Fernando Henrique contra a privatização.
A verdade -esse simples conceito que nos permite saber se uma porta está aberta ou fechada- tenderá a desaparecer. A tecnologia permitirá manipulações inauditas. Ninguém dará a menor importância. O poder de alguns poucos sobre o "virtual" eliminará qualquer possibilidade de contestação empírica.
Já vivemos, aliás, numa ficção, quando se sacrifica a economia do país em nome da "credibilidade da política econômica". Quando começo a falar em verdade, em vida real, já me sinto velho demais.
Os robôs humanizados, tipo Rosita, ocupam espaço. O sonho, algo cômico, que tínhamos de um futuro automatizado já chegou. Homens robotizados, nas academias, dedicam-se a exercícios inúteis, enquanto máquinas são programadas para demonstrar afeto. A humanidade -pelo menos uns dois terços dela- já se mostra dispensável. Começo a me sentir (coisa de velho) dispensável também. Por via das dúvidas, fico de férias até agosto.



Texto Anterior: Itaú Cultural tem cursos gratuitos
Próximo Texto: Artes Plásticas: Mostra em Veneza reúne visões do universo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.