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MARCELO COELHO
No futuro próximo, a verdade tenderá a desaparecer
Ainda não cheguei à famosa "terceira idade". Aliás,
que nome incrível esse. Sua intenção neutra, fundando-se numa
contagem abstrata do tempo, é
paradoxal. Pois quem é velho vive
da contagem concreta dos anos,
dos feitos, dos casos, dos números.
"Foi em 1978? Ou em 1987?"
Confunde-se a quantidade de casamentos, de netos, de pecados, de
viagens. Tudo se embaralha. É como se precisássemos não só de
óculos para ler jornal, mas também para ler o próprio passado.
Lentes para perto e para longe.
Há também uma coisa vaga
nesse termo, "terceira idade", que
remete aos "conceitos" que os
professores usam para dar notas
no boletim escolar: A, B, C... Prefiro (estou ficando velho) as notas
que vão de zero a dez, de preferência com frações de 0,25 -essas
frações começam a ficar importantes.
Por que só três idades? Minha
nota, não sei, deve estar entre uns
quatro e uns cinco e meio na vida,
mas sinto, desde já (e aqui entro,
com passos hesitantes, no tema
deste artigo), que o mundo está ficando (e esta é uma frase de velho) complicado demais para
mim.
Começo a estranhar, por exemplo, os banheiros públicos. Frequento-os (deve ser a próstata)
mais do que gostaria. Já não há
toalhas, torneiras, sabonetes, papéis higiênicos como antigamente. Quando quero enxugar as
mãos, surge um aparelho esquisito, capaz de soprar todos os ventos do inferno sobre minhas duas
palmas pecadoras. Um sopro
quente, seco e descabelador atinge-as como que por acessos eletrônicos; a operação demora mais do
que o normal e exige de mim uma
persistência e um capricho de que
não sou capaz.
Ou então há um depósito de
toalhas de papel, que avisa, desde
logo, que duas folhas -máxima
absorção- bastam para enxugar
as mãos da gente. Por birra, uso
umas quatro, pelo menos.
A economia também se aplica
às torneiras e ao sabonete. Antes,
abrir a torneira era um ato simples; exigia apenas que se girasse
a rosa-dos-ventos de metal, cega e
solícita, até chegar ao sudoeste, de
onde jorrava a água. Agora, não.
Temos de premir uma válvula,
como a de descarga, mas menos
generosa, à espera de um jato breve de água que nos limpe.
Mais breve ainda será a frequentação do sabonete. Havia
antes os pendurados no ar com
correntinhas, exigindo afagos
constrangidos do usuário. Hoje
há máquinas que dispõem pequenas doses de sabonete líquido como cuspes anti-sépticos.
A lógica desses dispositivos é
dupla. De um lado, economia
-de água, de papel, de sabonete.
De outro lado, assepsia e despersonalização. A toalha de pano é
nojenta, fiquemos com a descartável. Melhor: fiquemos sem toalha nenhuma, o secador de ar
quente rejeita qualquer contato.
Ora, a Aids não se transmite
dessa forma. Assusto-me diante
do medo que todos esses aparelhos revelam, ao corporal, ao físico. Não é à toa que tantas obras
de arte moderna apelam "à questão do corpo", borrando de sangue e vísceras as salas de exposição. Mais do que o sexo, é o corpo
que constitui o grande objeto de
repressão nos dias de hoje.
Tanto que se procura, a todo
custo, domesticá-lo nas academias. A esse propósito, vi por alto
outra coisa assustadora: o caderno que a Folha publicou no domingo, sobre o futuro do esporte.
Uma bola de futebol será dotada de emissores infravermelhos
capazes de dirigir o foco das câmeras de TV. Raquetes terão micromotores para adaptar o ângulo de impacto da bolinha do modo mais mortífero. Comecei a
achar que tanta eficiência é horrível.
Pois até mesmo um sedentário
como eu será capaz de jogar bem
uma partida de tênis. No limite,
Guga será dispensável. Por que
não substituir os pilotos de Fórmula 1 por robôs? O que sobra ao
ser humano?
Enquanto isso, a revista "Superinteressante" mostra a humanização dos robôs. Há alguns, encarregados de tarefas domésticas,
que se assemelham à velha Rosita
do desenho "Os Jetsons".
O futuro começa a ficar como
pensávamos que ele fosse. Cachorros de lata já estão à venda
no Japão. Rosita está entre nós.
Há água em Marte. Pior que tudo, leio na "Veja" que determinados dispositivos permitem acoplar imagens falsas a falas verdadeiras -e vice-versa- em qualquer documento gravado em vídeo, de modo que poderemos ver,
em breve, Hitler falando contra o
Holocausto e Fernando Henrique
contra a privatização.
A verdade -esse simples conceito que nos permite saber se
uma porta está aberta ou fechada- tenderá a desaparecer. A
tecnologia permitirá manipulações inauditas. Ninguém dará a
menor importância. O poder de
alguns poucos sobre o "virtual"
eliminará qualquer possibilidade
de contestação empírica.
Já vivemos, aliás, numa ficção,
quando se sacrifica a economia
do país em nome da "credibilidade da política econômica". Quando começo a falar em verdade, em
vida real, já me sinto velho demais.
Os robôs humanizados, tipo Rosita, ocupam espaço. O sonho, algo cômico, que tínhamos de um
futuro automatizado já chegou.
Homens robotizados, nas academias, dedicam-se a exercícios
inúteis, enquanto máquinas são
programadas para demonstrar
afeto. A humanidade -pelo menos uns dois terços dela- já se
mostra dispensável. Começo a me
sentir (coisa de velho) dispensável
também. Por via das dúvidas, fico
de férias até agosto.
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