|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
As visões do ver (e do não ver)
MARIO SERGIO CONTI
DA SUCURSAL DO RIO
O filósofo José Arthur Giannotti disse certa vez que
os cientistas sociais brasileiros
não deveriam se restringir a pensar temas nacionais. Para ele, pesquisar e escrever sobre, digamos,
os alfaiates do Piauí não é necessariamente sinal de nacionalismo.
A dedicação exclusiva a assuntos brasileiros pode ser indício de
colonialismo: as grandes questões
ficariam por conta de pensadores
dos países dominantes, enquanto
os periféricos se conformariam
em lidar com coisas pequenas.
"Janela da Alma", de João Jardim e Walter Carvalho, é um documentário que segue o postulado de Giannotti. Ele enfrenta um
tema abstrato, a visão, sem os travos do subdesenvolvimento.
Os diretores pensam grande já
no título, que alude à frase de Leonardo da Vinci: o olho é a janela
da alma, o espelho do mundo.
Eles entrevistaram artistas, intelectuais e pessoas ditas comuns da
Europa e do Brasil. Recorreram à
filosofia, à medicina, à biologia, à
música e à literatura para investigar o que é a visão.
O resultado é um filme que enriquece a visão que se tem da visão.
Os 19 entrevistados, com graus de
acuidade visual que vão da miopia à cegueira, discorrem sobre
ver, não ver e ver de maneira única, intransferível.
O leque de entrevistados é amplo. Entre eles estão o músico
Hermeto Pascoal, o escritor José
Saramago, a atriz alemã Hanna
Schygulla, o poeta Manoel de Barros, a cineasta Agnès Varda, o
neurologista inglês Oliver Sacks.
Absolutamente tudo o que dizem ou fazem é pertinente e interessante. Não há enrolação, não se
desperdiça imagem ou silêncio.
Acompanhando a torrente de
discursos, as imagens são focadas,
desfocadas e refocadas, alterando
a percepção do espectador. O documentário mostra um mundo
saturado de imagens que visam
atrair o olhar para o consumo (as
da propaganda) e o contrasta com
paisagens desoladas, onde não há
nada para ver.
A abstração também é confrontada com visões bem concretas. O
vereador cego Arnaldo Godoy, de
Belo Horizonte, conta com ótimo
humor como é a vida sem enxergar nada. O filósofo esloveno Eugen Bavcar, também ele cego,
mostra como tira ótimas fotografias. É preciso ver para crer.
Seria fácil, num filme como esse, cair na abstração pretensamente poética -citando Bergson, Borges, Milton e quetais- e
dela não sair. Ou então ir para o
pólo oposto, enfileirando esquisitices uma após a outra.
João Jardim e Walter Carvalho
habilmente vão de um pólo ao outro, tornando o filme cada vez
mais denso, cada vez mais claro e
opaco. A tese central, a de que a
visão é construção cultural, e não
um dado da natureza, é exposta
por meio de nuanças.
"Janela da Alma" está longe,
contudo, de ser um filme de tese.
Ele é uma expressão pessoal. João
Jardim (diretor de documentários
como "Terra Brasil" e "Free Tibet") e Walter Carvalho (diretor
de fotografia de "Abril Despedaçado") são duas toupeiras míopes: o primeiro usa óculos de 8 graus; Carvalho, 7,5.
Eles vêem pouco, mas enxergam muito: "Janela da Alma" é um filme luminoso.
Janela da Alma
Direção: João Jardim
Produção: Brasil, 2001
Com: José Saramago, Wim Wenders
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco 1
Texto Anterior: Cinema/Estréias - "Janela da Alma": Documentário investiga gradações do olhar Próximo Texto: "Timor Lorosae": Documentário abandona história e se perde na pieguice Índice
|