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biblioteca FOLHA
Obra com a qual o Nobel português ajudou a mudar os rumos do romance histórico chega amanhã às bancas
"Cerco" evidencia "nãos" de Saramago
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
José Saramago é um homem
que diz não. Sua persona pública
já pediu bastas de todas as ordens.
Chegou, em abril deste ano, até a
um barulhento não ao ex-aliado
Fidel. "Discordar é um direito que
se encontra e se encontrará inscrito com tinta invisível em todas as
declarações de direitos humanos
passadas, presentes e futuras."
Na literatura não é diferente.
Como marcou a ensaísta Leyla
Perrone-Moisés, na Folha, em
1998, "se bem observarmos, veremos que todos os romances de
Saramago são um "não" oposto à
infelicidade histórica do homem". Em "Memorial do Convento" ele apresenta o não à
opressão, monárquica ou religiosa. "A Jangada de Pedra" pode ser
visto como o não à Comunidade
Européia. Em "O Evangelho segundo Jesus Cristo", nega um
Deus que sacrifica seu próprio filho e deixa que, em seu nome,
corram rios de sangue. Por aí vai.
Mas não é nenhum desses o
mais famoso "não" do Nobel de
Literatura de 1998. Em "História
do Cerco de Lisboa", que a Biblioteca Folha leva às bancas amanhã, o escritor português
suspende essa palavra ao quase
status de protagonista.
Publicado originalmente em
1989, esse sexto romance de Saramago entrelaça duas narrativas.
Em alguns momentos, acompanhamos o cinquentão Raimundo
Benvindo Silva, que trabalha como revisor em uma editora, na
Lisboa contemporânea. Em outros instantes, temos a mesma cidade em 1147, quando foi tomada
pelos portugueses, com ajuda dos
cruzados, das mãos dos mouros.
As histórias confluem quando
Silva, revisor de currículo irretocável, resolve injustificadamente
mudar uma frase de um livro que
ele corrigia, livro esse chamado
"História do Cerco de Lisboa".
Onde lia-se que os participantes
das Cruzadas auxiliariam os portugueses nessa batalha ele antepõe, com sua esferográfica, a palavra "não". "Agora o que o livro
passou a dizer é que os cruzados
Não auxiliarão os portugueses a
conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade", escreve Saramago.
O singelo "não" que o revisor
encasqueta de colocar nessa história não passa batido. Treze dias
depois, sua "fraude" é descoberta.
Seus chefes, além de providenciarem uma errata, contratam uma
chefe para Raimundo.
Maria Sara, a revisora-chefe,
lança então um desafio a seu subordinado: que escreva ele mesmo uma história do cerco de Lisboa em que o rei português Afonso Henriques resolva todos os
seus problemas com os 12 mil homens que eram de sua guarda.
E nessa toada começam duas
histórias cruzadas de amor. "Os
dois cercos, o real e o fictício, se
confundem aqui com um cerco
amoroso, que se vai fechando sobre o velho revisor e sua jovem
editora, como se fecha, 800 imaginados anos antes, sobre um soldado português e a viúva de um
cruzado", crava o articulista da
Folha Arthur Nestrovski, na contracapa do livro.
A maestria com que Saramago
trança essas realidades e invenções, marca de boa parte das
grandes obras que ele levantou do
chão, como a magistral "O Ano da
Morte de Ricardo Reis", fez com
que "Cerco" fosse saudado por alguns críticos como "o livro que
reinventou o romance histórico".
Como escreveu o crítico João
Alexandre Barbosa no Mais! em
1998, "na esteira do que há de
mais inovador na narrativa moderna e pós-moderna, o romance
de Saramago é uma prolongada
discussão acerca das relações possíveis entre a representação da
realidade pela linguagem da narrativa e as inserções operadas pela
imaginação ficcional".
Ou como registra o próprio escriba do Alentejo em seu livro
"Manual de Pintura e Caligrafia",
de 1977, "às vezes, contamos certo, mas o acerto é muito maior
quando inventamos. A invenção
não pode ser confrontada com a
realidade, logo, tem mais probabilidade de ser exacta".
Viver não é preciso, parece soprar o homem que diz não.
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