UOL


São Paulo, sábado, 28 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"A VINGANÇA DA HISTÓRIA"

Novo livro do sociólogo analisa a singularidade da esquerda e do momento atual no Brasil

Emir Sader mostra "privilégio" do "atraso"

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Embora não seja exatamente um proletário, o sociólogo Emir Sader realiza a sua luta de classes particular em seu novo livro, "A Vingança da História" (Boitempo Editorial).
Contra a angústia fundamental da burguesia brasileira, diagnosticada recentemente pelo filósofo da USP Paulo Arantes (o temor de que o país esteja sempre "perdendo o bonde" do desenvolvimento econômico), o sociólogo defende a tese -emprestada do líder revolucionário russo Leon Trótski- de que há um "privilégio do atraso"; no caso, o nosso.
O argumento de Sader concentra-se menos numa suposta queima de etapas para o crescimento econômico do que na criação, a partir do "atraso" no desenvolvimento da esquerda brasileira, de possibilidades inesperadas para a mudança política no país.
Pois não é disso que se trata, nesses dias em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anda fundindo a cuca de velhos aliados na intelectualidade paulistana, uspiana, petista? O autor, professor da USP e da Uerj, é pertinente, se mais não fosse pelo protagonismo que vem exercendo no debate crítico, militante, jornalístico do novo governo.
Aos argumentos, cidadãos: a temporalidade brasileira, "atrasada" mesmo em relação a seus vizinhos latino-americanos, teria permitido ao país alcançar ao final do século 20 a formação de uma das esquerdas mais fortes do mundo (leia-se PT-MST-CUT).
"O atraso relativo da esquerda", pode-se ler à pág. 148, "construída num país agrário até entrada a segunda metade do século 20, permitiu que o golpe militar de 1964 atingisse um inimigo relativamente débil -em comparação com a força que já dispunham os vizinhos".
Tivemos o golpe antes, ele diz. Isso permitiu, defende o sociólogo, que, terminado o regime militar, não ingressássemos imediatamente "numa fase de hegemonia neoliberal" e gastássemos os 80 a fortalecer movimentos sociais e forças democráticas.
Mais uma vez tardiamente, afirma, chegamos ao neoliberalismo sob FHC. Entre outros fatores a frear a gana de um desmonte maior do Estado, a própria força que, construída nas lutas do ABC dos 70 e no país todo nos 80, a esquerda brasileira passou a ter, enquanto as resistências nos vizinhos eram enfraquecidas.
Outro "privilégio do atraso" seria o MST: sua força viria da "questão agrária" não resolvida.
Resta alguma dificuldade de conciliar essa idéia de atraso com a crítica que o próprio sociólogo faz de sentidos unívocos atribuídos à história, inclusive pelo próprio marxismo.
O livro atravessa o mundo e o século 20, mas sua inserção no debate imediato sobre a novidade do governo Lula é explícita. Como no caso de Trótski para a Revolução Russa, trata-se, no caso de Sader, de tentar explicar que vitória foi essa e que papel ela pode representar.
Na encruzilhada de um mundo novo (apresentado nas duas primeiras partes do livro), ele afirma que a combinação da singular desigualdade nacional com nossa "temporalidade" própria, "dependendo de sua articulação, pode levar o país a uma formidável estagnação e regressão de dimensões civilizatórias [...] ou a encarar a possibilidade histórica de uma ruptura e um salto de qualidade no seu processo de construção como nação e como sociedade".
É o problema do novo governo. Sader rejeita o vaticínio de que Lula beijou definitivamente a cruz do continuísmo. O suspense, no livro ao menos, permanece. Não sem que antes o autor faça as suas apostas sobre as condições necessárias para uma "ruptura" democrática com o modelo de "financeirização do Estado".
Para mudar o país, dada a força de resistência dos capitais financeiros, ele defende, o governo necessitará "de um forte apoio popular". Hugo Chávez, Venezuela? Não exatamente, ressalva Sader. Justamente por causa dessa maior organização dos movimentos sociais no Brasil, da força que essa esquerda brasileira teria passado a ter. Para além das decisões de gabinete, é uma escolha de classe que o presidente necessitaria fazer. Resta saber se alguém combinou com os russos, quer dizer, com os ex-trotskistas do governo.


Texto Anterior: biblioteca Folha: "Cerco" evidencia "nãos" de Saramago
Próximo Texto: Crítica: Sociólogo vê perspectivas
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.