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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Cinema-família
"Não Por Acaso" e "Cão sem Dono" têm pontos em comum, como a redenção por meio do afeto familiar
ENFRENTEI , em duas sessões
consecutivas, "Não por Acaso", de Philippe Barcinski, e
"Cão sem Dono", de Beto Brant. Ufa.
Os dois filmes, embora diferentes,
têm pontos em comum, além das indefectíveis mesas de fórmica, ladrilhos e detalhes tipo anos 50/60/70
que dão um jeitão meio cult-nostálgico à vida da classe média apertada.
Em ambos chamou-me a atenção
(se você não quer saber sobre o final
dos filmes, pare de ler aqui) um mesmo padrão de happy end: a dissolução das perdas, angústias e conflitos
por meio da reconciliação familiar.
Em "Não por Acaso", o desenlace,
na realidade, vem como conclusão
de um filme mais convencional, que
tenta ser imaginoso ao conciliar
duas histórias paralelas, sobre as
quais se projeta, como uma "moira",
uma terceira narrativa, de difícil
controle, que é o trânsito de São
Paulo. O final, com promessa de
amor e reencontro famíliar, é quase
uma conclusão natural.
Já em "Cão sem Dono", a história
pode ser lida como surpreendentemente careta, em contraste com a
atmosfera alternativa e deslocada
que o filme anuncia e explora. Em
resumo, temos uma parábola do rapaz perdido que, ao contrário do que
já se fez, não mata a família -mas se
reintegra à vida graças a ela.
No caso, é um garotão crescido,
sem inserção no mercado, que vive
de traduções (e ajuda dos pais), mora naquele apê vagabundo de solteiro sem grana, bebe e fuma desesperadamente e é amado por uma bela e
interessante mulher. Trepam muito, detonam garrafas, tocam violão,
até que um grave problema os afasta. Ele vai ao fundo do poço, se embriaga à morte, e os pais precisam
arrombar o apartamento para resgatá-lo semivivo.
De volta ao doce recôndito do lar,
o rapaz toma jeito. O pai conta que
também se emburacou na vida, que
teve problemas com cocaína, mas
que, diante do medo de perder a
(sempre ela) família, encontrou seu
eixo. O moço, então, vai se aprumando, raspa a barba Jean-Paul Belmondo, consegue emprego numa livraria e, claro, termina recompensado: o problema que causara o traumático afastamento é quase que divinamente sanado, e a amada, a essa
altura dada por enterrada, ressuscita, bela e fogosa, convidando-o ao telefone para ir com ela para Barcelona. The End. Agora, sim, ele pode
deixar o ninho e voar de novo.
Não tenho nada contra família
-ou, melhor, tenho o que qualquer
um deveria ter. Se ela pode enlouquecer pessoas, também é capaz de
salvá-las e de reestruturar suas vidas. Mas estamos falando de cinema
e não de mensagens de utilidade pública. O que talvez possa ter tido
uma intenção ambígua, pareceu-me
direto: um filme em chave "indie",
de um um naturalismo agressivo,
quase documental, com personagens trágicos, bizarros e doidões,
que, afinal, nos diz: "Que sorte que
esses caras fazem parte de uma família -senão estariam perdidos".
A metáfora óbvia que dá título ao
longa, baseado em livro de Daniel
Galera, é o vira-lata largado do rapaz, que sugestivamente morre
quando o amigo humano fica pronto
para viver. Saí com gosto de moral
hollywoodiana na garganta.
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