São Paulo, quinta-feira, 28 de junho de 2007

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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Cinema-família

"Não Por Acaso" e "Cão sem Dono" têm pontos em comum, como a redenção por meio do afeto familiar

ENFRENTEI , em duas sessões consecutivas, "Não por Acaso", de Philippe Barcinski, e "Cão sem Dono", de Beto Brant. Ufa. Os dois filmes, embora diferentes, têm pontos em comum, além das indefectíveis mesas de fórmica, ladrilhos e detalhes tipo anos 50/60/70 que dão um jeitão meio cult-nostálgico à vida da classe média apertada.
Em ambos chamou-me a atenção (se você não quer saber sobre o final dos filmes, pare de ler aqui) um mesmo padrão de happy end: a dissolução das perdas, angústias e conflitos por meio da reconciliação familiar.
Em "Não por Acaso", o desenlace, na realidade, vem como conclusão de um filme mais convencional, que tenta ser imaginoso ao conciliar duas histórias paralelas, sobre as quais se projeta, como uma "moira", uma terceira narrativa, de difícil controle, que é o trânsito de São Paulo. O final, com promessa de amor e reencontro famíliar, é quase uma conclusão natural.
Já em "Cão sem Dono", a história pode ser lida como surpreendentemente careta, em contraste com a atmosfera alternativa e deslocada que o filme anuncia e explora. Em resumo, temos uma parábola do rapaz perdido que, ao contrário do que já se fez, não mata a família -mas se reintegra à vida graças a ela.
No caso, é um garotão crescido, sem inserção no mercado, que vive de traduções (e ajuda dos pais), mora naquele apê vagabundo de solteiro sem grana, bebe e fuma desesperadamente e é amado por uma bela e interessante mulher. Trepam muito, detonam garrafas, tocam violão, até que um grave problema os afasta. Ele vai ao fundo do poço, se embriaga à morte, e os pais precisam arrombar o apartamento para resgatá-lo semivivo.
De volta ao doce recôndito do lar, o rapaz toma jeito. O pai conta que também se emburacou na vida, que teve problemas com cocaína, mas que, diante do medo de perder a (sempre ela) família, encontrou seu eixo. O moço, então, vai se aprumando, raspa a barba Jean-Paul Belmondo, consegue emprego numa livraria e, claro, termina recompensado: o problema que causara o traumático afastamento é quase que divinamente sanado, e a amada, a essa altura dada por enterrada, ressuscita, bela e fogosa, convidando-o ao telefone para ir com ela para Barcelona. The End. Agora, sim, ele pode deixar o ninho e voar de novo.
Não tenho nada contra família -ou, melhor, tenho o que qualquer um deveria ter. Se ela pode enlouquecer pessoas, também é capaz de salvá-las e de reestruturar suas vidas. Mas estamos falando de cinema e não de mensagens de utilidade pública. O que talvez possa ter tido uma intenção ambígua, pareceu-me direto: um filme em chave "indie", de um um naturalismo agressivo, quase documental, com personagens trágicos, bizarros e doidões, que, afinal, nos diz: "Que sorte que esses caras fazem parte de uma família -senão estariam perdidos".
A metáfora óbvia que dá título ao longa, baseado em livro de Daniel Galera, é o vira-lata largado do rapaz, que sugestivamente morre quando o amigo humano fica pronto para viver. Saí com gosto de moral hollywoodiana na garganta.


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