São Paulo, sábado, 28 de junho de 2008

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6ª Flip

Em "Tropa", fanáticos da justiça vão mais longe que malfeitores

Além de destacar o filme "Cronicamente Inviável", Schwarz comenta "Tropa de Elite': para o crítico, boa parte do público aprovou a tortura "estimulado pela farda'

DA REPORTAGEM LOCAL

Leia a seguir a continuação da entrevista com Roberto Schwarz, que comenta o interesse despertado por Machado de Assis no Brasil e no exterior. O crítico literário fala do relançamento de seus ensaios produzidos entre 1964 e 1978 ("O Pai de Família") e afirma que assistimos ao renascimento do liberalismo ("que havia entregado os pontos em 1968"). Schwarz compara "Cidade de Deus" e "Tropa de Elite". Para ele, boa parte do público aprovou a tortura no filme de José Padilha ("estimulado pela farda, pela empatia com os atores e pela missão justiceira"). (MARCOS STRECKER)  

FOLHA - Como explicar o interesse que Machado desperta ao mesmo tempo entre a crítica dos países "centrais" e "periféricos"?
SCHWARZ
- A consagração de Machado nos Estados Unidos começou na década de 1950, quando os principais romances dele foram traduzidos. O reconhecimento da sua grande qualidade literária se deu sem levar em conta o Brasil ou a literatura brasileira, que pareciam não ter importância no caso.
Na mesma época, entre nós, a crítica dava uma virada em direção oposta. Ela começava a descobrir a ligação profunda de Machado com a literatura brasileira anterior e com as grandes linhas de nossa realidade. O que é mais, estas ligações passavam a ser consideradas como parte de sua maestria artística.
Até então elas não haviam sido vistas e o escritor, embora muito respeitado, funcionara como um corpo estranho e um milagre em nosso meio. Noutros termos, armou-se um problema. O leitor estrangeiro culto, conhecedor dos clássicos internacionais do romance, percebe que Machado faz parte da lista dos grandes. Para isso, não precisa do Brasil.
Ao passo que uma parte dos leitores brasileiros, preocupada com as nossas peculiaridades e limitações, enxerga a força genial do escritor na profundidade com que soube configurar as questões locais, transcendendo o provincianismo. Ele entrava para aquela mesma lista dos grandes, mas por outra razão. O conflito entre as duas leituras tem substância histórica e merece ser discutido.

FOLHA - Como o sr. se sente com o relançamento de "O Pai de Família"? Seguindo as suas próprias palavras, quais são os "equívocos" mais significativos que o sr. apontaria em "Cultura e política, 1964-1969"? Ou os maiores acertos?
SCHWARZ
- O livro está fazendo 30 anos. São ensaios escritos entre 1964 e 1978. O tema da modernização conservadora, que a ditadura trouxe ao primeiro plano, está presente em todos eles. Graças à abertura política ulterior, uma parte das matérias se tornou histórica, espero que sem perder o interesse. Com modificações, outra parte continua atual, pois ainda vivemos na sociedade que a ditadura produziu.
Os conceitos e as imagens estão no tempo, e a sua alteração ou refutação pelo curso das coisas pode ser tão interessante quanto sua confirmação. Assim, por exemplo, a massa camponesa famélica de Nelson Pereira, Ruy Guerra e Glauber Rocha, intocada pelo consumo urbano, deixou de ser um eixo da imaginação. Noutro plano, há a volta à vida do liberalismo, que entregou os pontos em 1968, quando parecia esterilizado para sempre, mas adiante se casou ao consumismo e agora vai bem obrigado, fazendo estragos de novo tipo. Para concluir, a idéia de que a ditadura só reprimia e não transformava era falsa, como se verificou no momento da abertura, quando a esquerda quis retomar as idéias anteriores a 64 e teve que constatar que aquele mundo não existia mais. Etc.

FOLHA - Em entrevista à Folha no ano passado, o sr. apontou uma "desigualdade social degradada" bem representada pelo filme "Cronicamente Inviável", por "Estorvo" ou pelo minimalismo poético de Francisco Alvim. O sr. quer comentar?
SCHWARZ
- No plano da cultura, a abertura política não foi o que se esperava. Sobretudo não foi o que ela mesmo esperava. Restabelecida a democracia, as forças que haviam lutado contra a ditadura descobriram, para sua surpresa, que não tinham muito a dizer diante da nova situação do mundo, em que o capital havia derrotado o trabalho de maneira avassaladora.
De lá para cá, por mais que se diga, o país foi governado pelo que havia criado de melhor: primeiro a fina flor da intelectualidade de esquerda, depois a liderança sindical do ABC e o PT. Não obstante, o debate intelectual seguiu morno, enquanto não se cristalizava um sentimento novo, incômodo em toda linha, em que entretanto o público mais adiantado julgou reconhecer a realidade. Nem a urbanidade de Fernando Henrique nem a determinação com que Lula levou adiante o Bolsa Família convenceram a imaginação dos artistas, para os quais o espírito do período não estava aí.
Em São Paulo, até onde vejo, a discussão recuperou o gume com "Cronicamente Inviável", de Sergio Bianchi. Este mostrava uma burguesia chateada de não viver em Nova York e revoltada com a falta de segurança em casa. Noutras palavras, os beneficiários da situação brasileira a achavam uma porcaria e se sentiam prejudicados. Do outro lado estavam os trabalhadores, impregnados do imaginário anti-social dos patrões e querendo viver como eles, completando a degradação. Acossados pelo desemprego, pela criminalidade, pela prostituição, pelo terror e pela manipulação política, os pobres esperneavam como podiam, sem projeto de luta coletiva. Formando o denominador comum aos dois campos, a disposição generalizada para o trambique.
Para voltar à sua pergunta, ambos os pólos da relação estão degradados e até segunda ordem não acham inspiração regeneradora. A atual euforia, ligada à alta mundial das "commodities", vai fazer diferença?

FOLHA - Qual sua opinião sobre o sucesso de "Tropa de Elite", especialmente como contraponto a "Cidade de Deus"?
SCHWARZ
- A novidade e a revelação de "Cidade de Deus" -mais o romance do que o filme- é o ponto de vista narrativo, interno à vida dos bandidos. Como esta é violentíssima e quase anônima, o leitor não se identifica com ela, embora a veja por dentro e fique estatelado. Também em "Tropa de Elite" o ponto de vista é interno, mas agora à ação da polícia. Estimulado pela farda, pela empatia com os atores, que são astros, e pela missão justiceira, o espectador pode se identificar à violência desvairada e aprovar inclusive a tortura. Ao que parece é o que aconteceu com boa parte do público.
É verdade também que o espectador sem queda para os prazeres sádicos pode encarar os heróis com distância horrorizada, como anti-heróis. Nesse caso, ele vê a polícia dividida entre a corrupção e o enlouquecimento, o que não é banal e não deixa de ser instrutivo.
Se estou bem lembrado, Eugênio Bucci observou que os bandidos de "Cidade de Deus" têm muito de empresários. Em "Tropa de Elite", dependendo do ângulo, os fanáticos da justiça vão mais longe que os piores malfeitores. São exemplos da desigualdade degradada, ou das afinidades de fundo entre os pólos sociais, pelas quais você perguntou.


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