São Paulo, Segunda-feira, 28 de Junho de 1999
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FERNANDO GABEIRA
Uma cidade se embeleza para os de cima

De repente, o Rio ficou limpo. Quero dizer, a parte do Rio incluída no roteiro dos líderes europeus e latino-americanos.
Buracos foram tapados, túneis limpos e pintados de novo, ruas varridas... Bem que senti um certo movimento nos últimos dez dias.
Desembarcar na cidade, mesmo depois de uma curta ausência, é sentir a novidade. Quem chega ao Santos Dumont e faz o mesmo percurso que os líderes farão, do Museu de Arte Moderna para a zona sul, simplesmente não pode ignorar que houve um esforço de limpeza.
Mas não poderá evitar a ambivalência. Por que limpar a cidade apenas quando nos visitam os estrangeiros? Por que limpar apenas quando nos visitam dirigentes políticos e a mídia que os acompanha?
Quase não se faz esse tipo de pergunta. Estamos acostumados a aceitar as coisas assim. Isso quer dizer que estamos acostumados a uma certa autodepreciação. A beleza da cidade não tem nenhum valor para nós. Esse valor só emerge quando cintila no olhar do outro. Nesse momento, ele nos devolve alguma satisfação, não pela limpeza em si, mas pelo fato de que nos aprova, que reconhece nossas práticas de higiene urbana.
Essa minha argumentação poderia ser jogada de cabeça para baixo. Mary Douglas, num ensaio clássico sobre a insegurança humana diante da sujeira e da desordem, dá a entender que certos parâmetros de limpeza não podem ser impostos de uma cultura para outra. No caso das cidades brasileiras, não vejo na sujeira nenhum ato de resistência. Muito menos vejo nela uma sábia adequação diplomática, como reduzir a pimenta e o dendê para não arruinar a capacidade de trabalho daqueles que não estão acostumados à culinária afro-brasileira.
A idéia de limpar as ruas para a chegada dos líderes políticos nasce dos próprios políticos locais. Não imaginam a centelha de hostilidade que podem acender no homem de rua. Se a cidade se embeleza para que eles trabalhem algumas horas por aqui, por que não se embeleza para mim, que trabalho aqui não apenas algumas horas, mas toda a vida?
Uma das coisas que admiro nos crentes é o cuidado com que se vestem. Sentem-se criaturas de Deus, dotadas de uma transcendente dignidade.
Nada mais razoável que tenham limpeza e cuidado com seu próprio corpo. Essa auto-estima, que alguns indivíduos recolhem no seu encontro com a religião, poderia se projetar para o lugar onde se mora?
Os moradores do Rio gostam de sua cidade, têm muito orgulho etc.
Pensar que suas ruas são tratadas com carinho somente quando aparecem líderes estrangeiros por aqui é dolorosamente provinciano. O movimento de limpeza e reparação que vimos nos últimos dias teria de ser uma constante ao longo do ano.
O que os políticos dizem agora, como disseram em 92, é que essas ocasiões fazem aparecer dinheiro extra. Simplesmente não entendo a falta de dinheiro quando se trata de manter uma cidade limpa, de reparar a fadiga de seus materiais. Isso movimenta a economia, cria novos postos de trabalho e, para não dizer que não falei deles, acaba atraindo mais estrangeiros para nosso circuito turístico.
Ao cruzar o aterro do Flamengo, atravessar túneis e voltar para casa, senti uma paisagem renovada e lamentei que tivesse de vê-la pegando carona no olhar dos poderosos da Europa e América Latina. Sua presença deveria influir, no máximo, na limpeza das estátuas, pois são chegados a elas.
A beleza da metrópole tropical deveria ser um presente cotidiano para os que tiveram a felicidade de nascer aqui, a coragem de se mudar de vez, ou mesmo para a curiosidade do turista que desvela o novo mundo. Nunca um privilégio do poder. Ao se auto-intitularem integrantes de uma cimeira, realmente levam adiante a ilusão de que estão por cima, e as cidades devem ser retocadas à sua passagem.


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