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FERNANDO GABEIRA
Uma cidade se embeleza para os de cima
De repente, o Rio ficou limpo.
Quero dizer, a parte do Rio incluída no roteiro dos líderes europeus e latino-americanos.
Buracos foram tapados, túneis
limpos e pintados de novo, ruas
varridas... Bem que senti um
certo movimento nos últimos
dez dias.
Desembarcar na cidade, mesmo depois de uma curta ausência, é sentir a novidade. Quem
chega ao Santos Dumont e faz o
mesmo percurso que os líderes
farão, do Museu de Arte Moderna para a zona sul, simplesmente não pode ignorar que houve
um esforço de limpeza.
Mas não poderá evitar a ambivalência. Por que limpar a cidade apenas quando nos visitam os estrangeiros? Por que
limpar apenas quando nos visitam dirigentes políticos e a mídia que os acompanha?
Quase não se faz esse tipo de
pergunta. Estamos acostumados a aceitar as coisas assim. Isso quer dizer que estamos acostumados a uma certa autodepreciação. A beleza da cidade
não tem nenhum valor para
nós. Esse valor só emerge quando cintila no olhar do outro.
Nesse momento, ele nos devolve
alguma satisfação, não pela
limpeza em si, mas pelo fato de
que nos aprova, que reconhece
nossas práticas de higiene urbana.
Essa minha argumentação
poderia ser jogada de cabeça
para baixo. Mary Douglas, num
ensaio clássico sobre a insegurança humana diante da sujeira e da desordem, dá a entender
que certos parâmetros de limpeza não podem ser impostos de
uma cultura para outra. No caso das cidades brasileiras, não
vejo na sujeira nenhum ato de
resistência. Muito menos vejo
nela uma sábia adequação diplomática, como reduzir a pimenta e o dendê para não arruinar a capacidade de trabalho daqueles que não estão
acostumados à culinária afro-brasileira.
A idéia de limpar as ruas para
a chegada dos líderes políticos
nasce dos próprios políticos locais. Não imaginam a centelha
de hostilidade que podem acender no homem de rua. Se a cidade se embeleza para que eles
trabalhem algumas horas por
aqui, por que não se embeleza
para mim, que trabalho aqui
não apenas algumas horas, mas
toda a vida?
Uma das coisas que admiro
nos crentes é o cuidado com que
se vestem. Sentem-se criaturas
de Deus, dotadas de uma transcendente dignidade.
Nada mais razoável que tenham limpeza e cuidado com
seu próprio corpo. Essa auto-estima, que alguns indivíduos recolhem no seu encontro com a
religião, poderia se projetar para o lugar onde se mora?
Os moradores do Rio gostam
de sua cidade, têm muito orgulho etc.
Pensar que suas ruas são tratadas com carinho somente
quando aparecem líderes estrangeiros por aqui é dolorosamente provinciano. O movimento de limpeza e reparação
que vimos nos últimos dias teria
de ser uma constante ao longo
do ano.
O que os políticos dizem agora, como disseram em 92, é que
essas ocasiões fazem aparecer
dinheiro extra. Simplesmente
não entendo a falta de dinheiro
quando se trata de manter uma
cidade limpa, de reparar a fadiga de seus materiais. Isso movimenta a economia, cria novos
postos de trabalho e, para não
dizer que não falei deles, acaba
atraindo mais estrangeiros para nosso circuito turístico.
Ao cruzar o aterro do Flamengo, atravessar túneis e voltar
para casa, senti uma paisagem
renovada e lamentei que tivesse
de vê-la pegando carona no
olhar dos poderosos da Europa
e América Latina. Sua presença
deveria influir, no máximo, na
limpeza das estátuas, pois são
chegados a elas.
A beleza da metrópole tropical
deveria ser um presente cotidiano para os que tiveram a felicidade de nascer aqui, a coragem
de se mudar de vez, ou mesmo
para a curiosidade do turista
que desvela o novo mundo.
Nunca um privilégio do poder.
Ao se auto-intitularem integrantes de uma cimeira, realmente levam adiante a ilusão
de que estão por cima, e as cidades devem ser retocadas à sua
passagem.
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