São Paulo, sábado, 28 de julho de 2001

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TEATRO

Antunes lê "Medéia" com e contra Eurípedes

KIL ABREU
CRÍTICO DA FOLHA

O aspecto mais estimulante da "Medéia" de Antunes Filho é que o diretor trabalha ao mesmo tempo com e contra Eurípedes. Nessa curiosa dialética estão em jogo, e não exatamente em lados opostos, a conhecida tentativa de desnaturalização do mito grego, pretendida por Eurípedes, ao lado do indisfarçado desejo de retorno ao seio ordenado da natureza, que se pode intuir da montagem dirigida por Antunes.
Não à toa, Eurípedes estará, a 2.500 anos de distância, mais próximo da modernidade exemplar de um Ibsen e de seus contemporâneos. Com "Medéia", seu pré-iluminismo supõe não uma justiça natural -que em Ésquilo e Sófocles era regida por força do equilíbrio divino-, mas uma justiça comandada pelo acaso, construção dos homens.
Como não condenar as razões de Jasão, o homem que trai os filhos e a mulher que por ele fez o impossível? Mas como não compadecer-se dele, ao final, diante das desgraças? Por outro lado, como julgar a mulher que mata os próprios filhos sem que nos esforcemos por compreender a violenta força quase irracional de seus atos? É na defesa desses motivos, que articulam o psicológico ao social, que Eurípedes vai fazer sua declaração de amor à razão humana, mesmo quando discute seus limites, o caso de "Medéia".
Em sua adaptação para o mito, Antunes cria um espetáculo que oferece leituras, inclusive aquela apontada pelo diretor. De uma história sobre a paixão ferida e sua vingança, passando pelo arquétipo da insurreição feminina e chegando à metáfora da resposta da natureza às agressões humanas, "Medéia" presta-se, como poética e filosófica, a várias possibilidades que a montagem abriga.
Mas o mito está em aberto e pode ser interpretado como fundamento atemporal, a criação é mediada por fatores históricos ou, ao menos, por relações objetivas entre o criador e a sociedade.
Nesse sentido, o recorte que Antunes e o grupo do CPT fazem de "Medéia" dialoga ao mesmo tempo com essa atualização da tragédia e com suas origens, anteriores mesmo à versão de Eurípedes, em que a narrativa mítica relaciona a figura feminina aos ciclos naturais de fertilização, geração e morte. A crise se impõe no momento em que o ciclo é impedido por uma idéia de progresso que é exterior às necessidades elementares de equilíbrio do sistema.
O espetáculo personifica essa natureza originária (Gaia-Medéia, traída, trocada) e o homem, seu algoz (Jasão, que sai em busca de ganho material, em núpcias mais promissoras). O resultado do conflito, a mais cruel das vinganças, não poupa ninguém e inclui, como a instauração do caos, o sacrifício dos próprios filhos, de todos os agressores e de Medéia.
Para pôr em cena sua visão apocalíptica do mito, Antunes prefere a clareza e a objetividade de símbolos que apontam imediatamente para a leitura pretendida. A cenografia de Hideki Matsuka dispõe os quatro elementos como testemunhos rituais da tragédia.
O elenco, unido com as armas colhidas nos exercícios de interpretação do CPT, chega até onde é possível chegar e encontra na fala trágica o contraponto melódico, não sem dissonância. O Jasão de Kleber Caetano -irônico destino- é menos contundente que seus personagens laterais (Creonte, Egeu). O coro de mulheres amplia as vacilações da Medéia de Juliana Galdino, presa à sua formidável energia, que ainda procura as diferenças da personagem.
Ensaiando dar as costas para os deuses e pisando o pescoço do temido destino, Eurípedes mostra que o mergulho do herói no infortúnio é fruto de sua desgraçada autonomia diante dos fatos.
A atual montagem observa, junto com Eurípedes, o cachorro morto do fatalismo. Mas se aproxima de uma leitura que, de tão sintética, e de tão preocupada com a essencialidade dos seus conteúdos, corre o risco de apenas descrever um caos já dado e reconhecido. Ressalve-se, obviamente, a qualidade da matéria artística, que diz muito.


Medéia
   
Adaptação e direção: Antunes Filho
Elenco: Juliana Galdino, Kleber Caetano
Onde: Sesc Belenzinho (av. Álvaro Ramos, 991, SP, tel. 0/xx/11/6605-8143) Quando: estréia amanhã, às 19h; sex., sáb. e dom., às 21h
Quanto: de R$ 10 a R$ 20




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