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CONTARDO CALLIGARIS
"A Fantástica Fábrica de Chocolate"
O novo filme de Tim Burton, "A Fantástica Fábrica
de Chocolate", é delicioso. Há
chocolate para todo mundo: para
as crianças, para os cinéfilos (hilárias citações de clássicos do cinema) e para os adultos que têm
filhos.
A história é conhecida, pois o livro homônimo, de Roald Dahl, é
um grande clássico da literatura
infantil (ed. Martins Fontes).
Willy Wonka vive recluso e solitário em sua fábrica. Um dia, ele decide abrir as portas de seu mundo
achocolatado às cinco crianças
que encontrarem um convite na
embalagem de uma barra Wonka. Uma das cinco ganhará um
prêmio especial; as outras, digamos assim, terão o que merecem.
Detalhe: na verdade, contando
Willy Wonka, as crianças são seis.
A idéia de um país de guloseimas, espécie de Pasárgada onde
não conheceríamos frustração alguma, é antiga (vale a pena ler
"Cocanha", de Hilário Franco Júnior, Ateliê Editorial). Todos ou
quase todos, no mínimo, se lembram do país de Cocanha, onde
Pinóquio passa cinco meses longe
da presença chata dos adultos e
de outros grilos falantes. Ao fim
da estada, as orelhas de Pinóquio
crescem e se tornam estranhamente peludas. As crianças de Cocanha se divertem à beça, mas
são cruelmente punidas: transformam-se em burros.
Na língua portuguesa, "cocanha" é o pau-de-sebo, um mastro
untado em cima do qual é colocado um prêmio: tente chegar ao cume, a gente dará risadas quando
você aterrissar ruidosamente sobre seu bumbum. É a moral da
aventura de Pinóquio em Cocanha: as crianças, quando chegam
ao país de seus sonhos (sem adultos para mandar nelas), só fazem
besteiras, tornam-se bestas.
E você se lembra de "Struwwelpeter", de Heinrich Hoffmann,
com aqueles desenhos terrificantes? A criança que não come a sopa acaba morta e enterrada, a
que chupa os dedos é mutilada a
golpes de tesoura e por aí vai. Em
"Struwwelpeter" não havia Cocanha, mas a idéia era a mesma: o
horror espreita as crianças que
não escutam pais e adultos.
Ora, a história de Dahl, contada
admiravelmente por Tim Burton,
é mais sutil. As crianças descontroladas acabam mal, com um
certo requinte de crueldade (à la
"Pinóquio" e à la "Struwwelpeter"), mas (aqui está a diferença)
elas não vão sozinhas para Cocanha (para a fábrica): elas são
acompanhadas pelo adulto que
mais foi e é responsável por sua
educação ou falta de educação.
Em suma, a história não contrapõe os apetites infantis à sabedoria dos grandes, que deveriam
domá-los; ao contrário, na "Fábrica", os marmanjos mais insuportáveis são os dignos rebentos
dos adultos que os acompanham.
O filme funciona como um repertório das aberrações dos adultos
em sua relação com as crianças.
Há o menino gordão, filho de
uma mãe que decidiu dispensar
ao filho uma infinita satisfação
oral, do seio à barra de chocolate.
Há a menina rica, cujo pai obedece a todos os caprichos da filha.
São exemplos de pais preocupados não com o bem-estar dos filhos, mas com seu próprio prazer:
quem não sabe dizer "não" goza
com a ilusão de sua própria onipotência. "Consigo satisfazer
sempre o desejo de meus filhos,
produzo filhos sem faltas e sem falhas."
Há a menina que só sonha em
deixar seu nome no livro dos recordes e cuja mãe quer uma filha
campeã. Há o menino obcecado
por videogames e outras tecnologias eletrônicas: as queixas do
pai, que não entende a metade do
que o filho diz, mal escondem a
admiração pelo filho que sabe
mais que os adultos. São exemplos em que amar os filhos significa apenas encarregá-los de realizar nossos sonhos frustrados.
Enfim, há o próprio Willy Wonka, cujo pai (não direi como para
não estragar a surpresa) queria
que o filho fosse a prova da excelência da arte paterna -um pouco como se pais psicanalistas quisessem criar filhos analisados desde nenês, isentos de conflitos e
neuroses, monumentos comemorativos da "competência" dos
pais.
Resta Charlie. Ele, aparentemente, foi criado da maneira certa. Como? Só duas explicações (o
espectador encontrará outras): 1)
entre os pais de Charlie vige uma
solidariedade amorosa absoluta
diante das adversidades, que não
são poucas -assim é transmitida
uma hierarquia de valores; 2) a
família de Charlie inclui (imagem inesquecível) os quatro avós,
que não param de falar, deitados
numa mesma cama instalada no
meio da casa -Charlie não é o
porta-bandeira da frustração ou
da obsessão de um genitor, ele é o
resultado de uma história (polifônica), que lhe deixa a tarefa de ser
"ele mesmo".
Sábado passado, num cinema
paulistano, na sessão em que o filme é dublado (para as crianças
entenderem), esgotaram-se os cadeirões que se encaixam nos assentos e impedem que os mais
miúdos sejam engolidos pelas poltronas. Uma funcionária do cinema perguntou gentilmente a uma
menina já de bom tamanho se ela
poderia sentar como adulta e ceder seu cadeirão a uma criança
bem menor. O pai da menina se
indignou: "MINHA filha NÃO vai
ceder seu cadeirão. O problema é
de vocês, encontrem mais cadeirões" (fabriquem mais chocolate?).
Espero que o dito pai tenha tirado algum proveito do filme.
@ - ccalligari@uol.com.br
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