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Crítica
Profetiza do lixo nasce de bela fotografia
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Nos anos 60, o CPC ia ao
povo em busca de uma
verdade nacional.
Eram sambistas, cangaceiros,
artesãos ou futebolistas os que
pareciam produzir o segredo de
nossa salvação. Eram os anos
Guarnieri -para lembrar o autor de "Eles Não Usam Black-Tie"-, os anos Augusto Boal.
Uma ditadura militar e a decadência da URSS nos fizeram
enterrar ilusões. Uma nova geração, nos anos 80, desperta para os visionários dos anos 70 (e
60 também), que tinham passado quase em branco, como
"marginais". Eram Sganzerla,
Bressane, Mojica, Zé Celso.
Passamos a acreditar que a cultura podia ser a salvação.
Como chegamos aos anos
2000? Talvez seja essa a principal questão que este filme propõe ao público. "Estamira" nasce do longo trabalho fotográfico de Marcos Prado no lixão do
Jardim Gramacho, no Rio. É ali
que ele conhece Estamira.
Não é preciso mais do que alguns segundos para perceber
que não estamos mais nos anos
60. Em meio ao lixo, essa visionária se dispõe a "revelar a verdade", a mostrar o que está
"além dos além", aquilo que
"cientista nenhum viu".
O diagnóstico clínico de Estamira é esquizofrenia. Pode
ser. Mas esse é um mal de quase
todo profeta, de modo que Estamira não interessa como caso
clínico senão aos especialistas.
É de imagens que se trata:
uma profetiza em meio aos
abutres, proferindo frases
grandiloqüentes, intercaladas
com momentos em que se comunica por grunhidos que
compõem um simulacro de língua pessoal. É uma mulher cujo
discurso parece fazer parte do
lixo que ela recolhe para sobreviver: um ajuntamento de palavras incapazes de fazer sentido.
Mas não percebemos essa ausência de sentido como loucura. Seu discurso até parece, às
vezes, com passagens delirantes dos filmes de Glauber Rocha. Ou de Zé do Caixão.
Quem será, por exemplo, esse Trocadilo a que se refere?
Parece um Deus decaído, vingativo e mau, contra quem o
homem precisa se levantar. Ele
é a expressão do "esperto ao
contrário" -outro personagem
recorrente de suas perorações.
O que diz Estamira quase
nunca faz sentido. Mas a questão é: o que mais faz? Já que somos tão sãos, poderíamos tentar responder isso. Estamos no
lixão do século 21. As palavras
que procuram dar forma ao real
não raro se atropelam, se recusam a significar. Mas também
podem se arranjar em sua força
com radicalidade niilista, como
nos discursos contra Deus, obscuros e sublimes.
É possível objetar que Prado
cria um lixão terrivelmente fotogênico. Isso talvez seja necessário para o espectador suportar o longo convívio com essa
paisagem inóspita. Pois, acima
de tudo, é ela que nos informa
sobre o local consignado ao povo brasileiro no novo milênio.
ESTAMIRA
Direção: Marcos Prado
Produção: Brasil, 2004
Quando: a partir de hoje no Cine Bombril e no Frei Caneca Unibanco Arteplex
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