São Paulo, sexta-feira, 28 de julho de 2006

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Crítica

Profetiza do lixo nasce de bela fotografia

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Nos anos 60, o CPC ia ao povo em busca de uma verdade nacional.
Eram sambistas, cangaceiros, artesãos ou futebolistas os que pareciam produzir o segredo de nossa salvação. Eram os anos Guarnieri -para lembrar o autor de "Eles Não Usam Black-Tie"-, os anos Augusto Boal.
Uma ditadura militar e a decadência da URSS nos fizeram enterrar ilusões. Uma nova geração, nos anos 80, desperta para os visionários dos anos 70 (e 60 também), que tinham passado quase em branco, como "marginais". Eram Sganzerla, Bressane, Mojica, Zé Celso.
Passamos a acreditar que a cultura podia ser a salvação. Como chegamos aos anos 2000? Talvez seja essa a principal questão que este filme propõe ao público. "Estamira" nasce do longo trabalho fotográfico de Marcos Prado no lixão do Jardim Gramacho, no Rio. É ali que ele conhece Estamira.
Não é preciso mais do que alguns segundos para perceber que não estamos mais nos anos 60. Em meio ao lixo, essa visionária se dispõe a "revelar a verdade", a mostrar o que está "além dos além", aquilo que "cientista nenhum viu".
O diagnóstico clínico de Estamira é esquizofrenia. Pode ser. Mas esse é um mal de quase todo profeta, de modo que Estamira não interessa como caso clínico senão aos especialistas.
É de imagens que se trata: uma profetiza em meio aos abutres, proferindo frases grandiloqüentes, intercaladas com momentos em que se comunica por grunhidos que compõem um simulacro de língua pessoal. É uma mulher cujo discurso parece fazer parte do lixo que ela recolhe para sobreviver: um ajuntamento de palavras incapazes de fazer sentido.
Mas não percebemos essa ausência de sentido como loucura. Seu discurso até parece, às vezes, com passagens delirantes dos filmes de Glauber Rocha. Ou de Zé do Caixão. Quem será, por exemplo, esse Trocadilo a que se refere? Parece um Deus decaído, vingativo e mau, contra quem o homem precisa se levantar. Ele é a expressão do "esperto ao contrário" -outro personagem recorrente de suas perorações.
O que diz Estamira quase nunca faz sentido. Mas a questão é: o que mais faz? Já que somos tão sãos, poderíamos tentar responder isso. Estamos no lixão do século 21. As palavras que procuram dar forma ao real não raro se atropelam, se recusam a significar. Mas também podem se arranjar em sua força com radicalidade niilista, como nos discursos contra Deus, obscuros e sublimes.
É possível objetar que Prado cria um lixão terrivelmente fotogênico. Isso talvez seja necessário para o espectador suportar o longo convívio com essa paisagem inóspita. Pois, acima de tudo, é ela que nos informa sobre o local consignado ao povo brasileiro no novo milênio.


ESTAMIRA     
Direção: Marcos Prado
Produção: Brasil, 2004
Quando: a partir de hoje no Cine Bombril e no Frei Caneca Unibanco Arteplex


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