São Paulo, sexta-feira, 28 de setembro de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Os últimos instantes de um terrorista-banana

Qual teria sido a pior hora, ou, conforme o ponto de vista pessoal, a mais decisiva para os terroristas que explodiram as torres do World Trade Center? Antes que me acusem de espírito de porco, explico-me.
Como qualquer ser humano, é evidente que me senti horrorizado diante daquela tragédia. Para qualquer um, fica fácil imaginar o pânico diante da estupidez do atentado.
As pessoas que estavam em seus escritórios, nos elevadores, nos banheiros, nas escadas e nos corredores, de repente, trombaram com um gigantesco monstro de metal e fogo que varreu andares e destruiu dois dos maiores prédios do mundo.
Embora nunca se tenha passado por situação parecida ou semelhante, sente-se o estupor de cada vítima, morrendo sem saber como nem por que e de forma tão dramática.
É fácil imaginar a cena. Estou no meu escritório, liguei o computador, tirei o paletó e coloquei-o no armário. O contínuo vem com o primeiro café do dia e comenta alguma coisa. De repente ele arregala os olhos, eu nem tenho tempo de me voltar: sou massacrado por 70 toneladas de aço e 125 mil litros de combustível já devidamente em chamas. Ponto final. Descanso em paz, embora não estivesse cansado naquela manhã.
Uns pelos outros, os dramas individuais, quanto mais dolorosos, mais fáceis de serem imaginados e sofridos. Tal como não havia escolha para mim na cena acima esboçada, tampouco houve escolha para as 6.000 e tantas vítimas do atentado de 11 de setembro.
Contudo o que não consigo imaginar, impossível de visualizar, é o desafio dos terroristas que embarcaram nos aviões-torpedos. Não seriam os primeiros suicidas da história nem serão os últimos. Muitos são os motivos que levam ao suicídio. Já disseram até que a autodestruição é a única solução para o absurdo da condição humana. As pessoas se suicidam por amor, por dívidas, por vergonha, por remorso, em defesa da honra, por frustrações e até por causas políticas e religiosas -as mais diferentes e contraditórias. No Vietnã, os bonzos se encharcavam de gasolina e tocavam fogo em si mesmos. Os camicases se matavam pelo Japão. São escolhas, discutíveis ou não, mas escolhas.
Uma vez decidido pelo sacrifício pessoal, tudo fica fácil, tudo pode ser previsto e assimilado. Nos casos dos pilotos suicidas, por exemplo. Eles sabiam que, em certo momento, na cabine de comando, seriam os primeiros a ver as paredes de vidro e aço do WTC, que por elas penetrariam em chamas, que tudo duraria segundos e pronto. Até aí, tudo nos conformes de qualquer suicídio, por mais espetacular que tenha sido a maneira de praticá-lo.
O que, no meu caso particular, fica impossível imaginar é o antecedente imediato do atentado. O momento em que os suicidas, como passageiros comuns, fazem o check in no aeroporto, entram na fila com os passageiros que morrerão com eles. Tem sempre um que ajuda o outro a empurrar o carrinho, a dar uma informação sobre o guichê, a fazer um comentário sobre o tempo ou o modo de embarque.
Em seguida, estão todos no portão respectivo, esperando o momento de serem chamados a embarcar. Sou um deles, digamos, o piloto que vai morrer e matá-los. Discreta ou ostensivamente, todos se olham avaliando-se, lêem jornais, falam nos celulares, caminham de um lado para o outro. Todos ficarão algumas horas sentados e amarrados nas poltronas.
Tem sempre alguém que cochila num canto e outro que abre o laptop para registrar alguma coisa ou simplesmente mostrar que é um executivo atarefado.
Todos vão morrer dali a pouco, junto comigo, que vou levá-los para a morte. Fui preparado para enfrentar a situação, encarar a morte no impacto formidável com o destino que escolhi. Mas, olhando bem, que tem a ver comigo aquele homem gordo que está lendo o jornal? Aquela moça que ajeita o cabelo, aquele senhor de idade que com cara de sono parece nem estar ali?
Todos vieram de algum lugar, de suas casas, de suas famílias e de seus negócios, todos vão para a morte, e sou eu quem vai levá-los. Nenhum deles suspeita de que eu seja a Morte.
Se houvesse um paranormal no meio dessa gente, algum Paulo Coelho que adivinha sinais, veria que meu rosto não é de carne e osso, é só osso, as duas órbitas escuras e vazias no lugar dos olhos, foice encostada no meu ombro descarnado.
Não houve simulador de vôo que me treinasse, idéia ou religião que me preparasse para aquilo. Talvez tenham me aconselhado a não pensar naquela espera pelo vôo que será o último, para mim e para eles.
Afinal, serão meus companheiros de viagem. Não importa que seja a última, é uma viagem tão especial que não terá chegada. Lá dentro, ao tomarmos nossos lugares, trocaremos pequenas gentilezas, talvez ajude uma senhora a colocar sua valise pesada no compartimento acima da poltrona. Ela dirá obrigada.
A comissária de bordo passará pelo corredor e me oferecerá jornais e revistas. Eu olharei para ela e também direi obrigado. Não lerei nenhum jornal nem revista. Mas gostaria de ler um jornal ou uma revista no dia seguinte.



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