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CARLOS HEITOR CONY
Os últimos instantes de um terrorista-banana
Qual teria sido a pior hora, ou, conforme o ponto de vista pessoal, a mais decisiva para
os terroristas que explodiram as
torres do World Trade Center?
Antes que me acusem de espírito
de porco, explico-me.
Como qualquer ser humano, é
evidente que me senti horrorizado diante daquela tragédia. Para qualquer um, fica fácil imaginar
o pânico diante da estupidez do
atentado.
As pessoas que estavam em seus
escritórios, nos elevadores, nos
banheiros, nas escadas e nos corredores, de repente, trombaram
com um gigantesco monstro de
metal e fogo que varreu andares e
destruiu dois dos maiores prédios
do mundo.
Embora nunca se tenha passado por situação parecida ou semelhante, sente-se o estupor de
cada vítima, morrendo sem saber
como nem por que e de forma tão
dramática.
É fácil imaginar a cena. Estou
no meu escritório, liguei o computador, tirei o paletó e coloquei-o
no armário. O contínuo vem com
o primeiro café do dia e comenta
alguma coisa. De repente ele arregala os olhos, eu nem tenho tempo de me voltar: sou massacrado
por 70 toneladas de aço e 125 mil
litros de combustível já devidamente em chamas. Ponto final.
Descanso em paz, embora não estivesse cansado naquela manhã.
Uns pelos outros, os dramas individuais, quanto mais dolorosos,
mais fáceis de serem imaginados
e sofridos. Tal como não havia escolha para mim na cena acima
esboçada, tampouco houve escolha para as 6.000 e tantas vítimas
do atentado de 11 de setembro.
Contudo o que não consigo
imaginar, impossível de visualizar, é o desafio dos terroristas que
embarcaram nos aviões-torpedos.
Não seriam os primeiros suicidas
da história nem serão os últimos.
Muitos são os motivos que levam
ao suicídio. Já disseram até que a
autodestruição é a única solução
para o absurdo da condição humana. As pessoas se suicidam por
amor, por dívidas, por vergonha,
por remorso, em defesa da honra,
por frustrações e até por causas
políticas e religiosas -as mais diferentes e contraditórias. No Vietnã, os bonzos se encharcavam de
gasolina e tocavam fogo em si
mesmos. Os camicases se matavam pelo Japão. São escolhas, discutíveis ou não, mas escolhas.
Uma vez decidido pelo sacrifício
pessoal, tudo fica fácil, tudo pode
ser previsto e assimilado. Nos casos dos pilotos suicidas, por exemplo. Eles sabiam que, em certo
momento, na cabine de comando,
seriam os primeiros a ver as paredes de vidro e aço do WTC, que
por elas penetrariam em chamas,
que tudo duraria segundos e
pronto. Até aí, tudo nos conformes de qualquer suicídio, por
mais espetacular que tenha sido a
maneira de praticá-lo.
O que, no meu caso particular,
fica impossível imaginar é o antecedente imediato do atentado. O momento em que os suicidas, como passageiros comuns, fazem o
check in no aeroporto, entram na
fila com os passageiros que morrerão com eles. Tem sempre um
que ajuda o outro a empurrar o
carrinho, a dar uma informação
sobre o guichê, a fazer um comentário sobre o tempo ou o modo de embarque.
Em seguida, estão todos no portão respectivo, esperando o momento de serem chamados a embarcar. Sou um deles, digamos, o
piloto que vai morrer e matá-los.
Discreta ou ostensivamente, todos se olham avaliando-se, lêem
jornais, falam nos celulares, caminham de um lado para o outro.
Todos ficarão algumas horas sentados e amarrados nas poltronas.
Tem sempre alguém que cochila
num canto e outro que abre o laptop para registrar alguma coisa ou simplesmente mostrar que é
um executivo atarefado.
Todos vão morrer dali a pouco,
junto comigo, que vou levá-los
para a morte. Fui preparado para
enfrentar a situação, encarar a
morte no impacto formidável
com o destino que escolhi. Mas,
olhando bem, que tem a ver comigo aquele homem gordo que está
lendo o jornal? Aquela moça que
ajeita o cabelo, aquele senhor de
idade que com cara de sono parece nem estar ali?
Todos vieram de algum lugar,
de suas casas, de suas famílias e
de seus negócios, todos vão para a
morte, e sou eu quem vai levá-los.
Nenhum deles suspeita de que eu
seja a Morte.
Se houvesse um paranormal no
meio dessa gente, algum Paulo
Coelho que adivinha sinais, veria
que meu rosto não é de carne e osso, é só osso, as duas órbitas escuras e vazias no lugar dos olhos,
foice encostada no meu ombro
descarnado.
Não houve simulador de vôo
que me treinasse, idéia ou religião
que me preparasse para aquilo.
Talvez tenham me aconselhado a
não pensar naquela espera pelo
vôo que será o último, para mim e
para eles.
Afinal, serão meus companheiros de viagem. Não importa que
seja a última, é uma viagem tão
especial que não terá chegada. Lá
dentro, ao tomarmos nossos lugares, trocaremos pequenas gentilezas, talvez ajude uma senhora a
colocar sua valise pesada no compartimento acima da poltrona.
Ela dirá obrigada.
A comissária de bordo passará
pelo corredor e me oferecerá jornais e revistas. Eu olharei para ela
e também direi obrigado. Não lerei nenhum jornal nem revista.
Mas gostaria de ler um jornal ou
uma revista no dia seguinte.
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