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LITERATURA
Gellhorn e o olhar (não só) feminino sobre o século 20
19.mai.1939 - Associated Press
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O general Francisco Franco, após a Guerra Civil Espanhola, testemunhada pela jornalista americana Martha Gellhorn |
NELSON ASCHER
ARTICULISTA DA FOLHA
Quando não restar mais
ninguém que tenha sido
marcado pessoalmente pelos horrores do século 20, é bem possível
que esses cem anos de história sejam lembrados não pelo seu lado
negro, mas por sua conquista
mais indiscutivelmente positiva: a
emancipação feminina. Processo
em andamento, ainda hoje circunscrito sobretudo ao Ocidente
e, mesmo neste, mais concreto
entre as classes média e abastada
do que no restante da sociedade,
trata-se de uma revolução que,
eclipsando a francesa, a russa e
talvez até a industrial, envolve
transformações cujos efeitos mal
começaram a ser percebidos.
Um desses, no entanto, visível a
olho nu, foi a irrupção em massa
de mulheres em todos os campos
da cultura. Por razões que continuam misteriosas, esta ocorreu
muito mais intensamente nos territórios da escrita e antes nos países de língua inglesa do que nos
outros.
Uma boa dúzia ou mais das
maiores personalidades literárias
e culturais anglo-saxãs do século
20 tinham nomes femininos, mas,
e eis aqui a verdadeira marca do
progresso, isso se torna quase irrelevante quando se considera a
grandeza de seu trabalho. Defendê-las, de um ponto de vista feminista, enquanto ou porque escritoras, seria quase uma ofensa: elas
são escritores além e acima das
questões de gênero.
Um exemplo ilustra perfeitamente esse ponto. Era uma vez
uma norte-americana que escrevia bons contos e romances, mas
não só. Nascida em 1908 em St.
Louis, Missouri, quando morreu,
em 1998, havia se tornado uma
das mais penetrantes testemunhas de seu tempo, pois foi, antes
de mais nada, uma grande jornalista, uma correspondente de
guerra que começou sua carreira
cobrindo, em 1937, a Guerra Civil
Espanhola e, já octogenária, ainda
acompanhou a invasão americana do Panamá em 1990.
No entretempo, testemunhou o
ataque soviético à Finlândia em
1940, a Segunda Guerra, vários
conflitos da época da descolonização, capítulos diversos das
guerras árabe-israelenses etc.
Ela estava com as tropas aliadas
quando estas libertaram o campo
de concentração de Dachau e cobriu, de modo menos pretensioso, mas não menos inteligente
que Hannah Arendt, o julgamento do criminoso nazista Adolf
Eichmann em Jerusalém.
Seu nome era Martha Gellhorn.
De resto, e vale a pena notar que,
conforme passam os anos, tal fato
se reduz a detalhe anedótico, ela
foi também a terceira mulher de
Ernest Hemingway, a única, ao
que parece, a enfrentá-lo pessoal e
profissionalmente enquanto a relação conturbada de ambos perdurou.
Num episódio famoso, quando
viviam em Cuba, ao saírem de
uma festa, Martha assumiu a direção do carro favorito do escritor
que, bêbado, insistia em dirigi-lo
e, diante da recusa dela, a esbofeteou. Ela então enfiou de propósito o carro numa árvore e foi embora. Consta igualmente que ele
teria passado a Segunda Guerra
no conforto cubano se a partida
da mulher para a Europa como
correspondente não tivesse acendido sua rivalidade.
Há duas antologias úteis do jornalismo dela, ambas publicadas
na Inglaterra pela Granta: "The
Face of War", reunindo sua correspondência de guerra, e "The
View from the Ground", que recolhe suas reportagens não tanto
sobre tempos de paz quanto sobre
os períodos entre batalhas.
Suas informações são de primeira mão, suas opiniões não envelheceram e sua prosa é muscularmente feminina. Agora falta
apenas traduzi-la.
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