São Paulo, sábado, 28 de setembro de 2002

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LITERATURA

Gellhorn e o olhar (não só) feminino sobre o século 20

19.mai.1939 - Associated Press
O general Francisco Franco, após a Guerra Civil Espanhola, testemunhada pela jornalista americana Martha Gellhorn


NELSON ASCHER
ARTICULISTA DA FOLHA

Quando não restar mais ninguém que tenha sido marcado pessoalmente pelos horrores do século 20, é bem possível que esses cem anos de história sejam lembrados não pelo seu lado negro, mas por sua conquista mais indiscutivelmente positiva: a emancipação feminina. Processo em andamento, ainda hoje circunscrito sobretudo ao Ocidente e, mesmo neste, mais concreto entre as classes média e abastada do que no restante da sociedade, trata-se de uma revolução que, eclipsando a francesa, a russa e talvez até a industrial, envolve transformações cujos efeitos mal começaram a ser percebidos.
Um desses, no entanto, visível a olho nu, foi a irrupção em massa de mulheres em todos os campos da cultura. Por razões que continuam misteriosas, esta ocorreu muito mais intensamente nos territórios da escrita e antes nos países de língua inglesa do que nos outros.
Uma boa dúzia ou mais das maiores personalidades literárias e culturais anglo-saxãs do século 20 tinham nomes femininos, mas, e eis aqui a verdadeira marca do progresso, isso se torna quase irrelevante quando se considera a grandeza de seu trabalho. Defendê-las, de um ponto de vista feminista, enquanto ou porque escritoras, seria quase uma ofensa: elas são escritores além e acima das questões de gênero.
Um exemplo ilustra perfeitamente esse ponto. Era uma vez uma norte-americana que escrevia bons contos e romances, mas não só. Nascida em 1908 em St. Louis, Missouri, quando morreu, em 1998, havia se tornado uma das mais penetrantes testemunhas de seu tempo, pois foi, antes de mais nada, uma grande jornalista, uma correspondente de guerra que começou sua carreira cobrindo, em 1937, a Guerra Civil Espanhola e, já octogenária, ainda acompanhou a invasão americana do Panamá em 1990.
No entretempo, testemunhou o ataque soviético à Finlândia em 1940, a Segunda Guerra, vários conflitos da época da descolonização, capítulos diversos das guerras árabe-israelenses etc.
Ela estava com as tropas aliadas quando estas libertaram o campo de concentração de Dachau e cobriu, de modo menos pretensioso, mas não menos inteligente que Hannah Arendt, o julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann em Jerusalém.
Seu nome era Martha Gellhorn. De resto, e vale a pena notar que, conforme passam os anos, tal fato se reduz a detalhe anedótico, ela foi também a terceira mulher de Ernest Hemingway, a única, ao que parece, a enfrentá-lo pessoal e profissionalmente enquanto a relação conturbada de ambos perdurou.
Num episódio famoso, quando viviam em Cuba, ao saírem de uma festa, Martha assumiu a direção do carro favorito do escritor que, bêbado, insistia em dirigi-lo e, diante da recusa dela, a esbofeteou. Ela então enfiou de propósito o carro numa árvore e foi embora. Consta igualmente que ele teria passado a Segunda Guerra no conforto cubano se a partida da mulher para a Europa como correspondente não tivesse acendido sua rivalidade.
Há duas antologias úteis do jornalismo dela, ambas publicadas na Inglaterra pela Granta: "The Face of War", reunindo sua correspondência de guerra, e "The View from the Ground", que recolhe suas reportagens não tanto sobre tempos de paz quanto sobre os períodos entre batalhas.
Suas informações são de primeira mão, suas opiniões não envelheceram e sua prosa é muscularmente feminina. Agora falta apenas traduzi-la.


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