São Paulo, sábado, 28 de setembro de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

LITERATURA

Chega às livrarias "Nove Noites", romance de Bernardo Carvalho, que usa morte de antropólogo como mote

Suicídio real alimenta ficção de escritor

DA REPORTAGEM LOCAL

"Eu não deveria dar entrevista. Tudo o que eu disser pode ser usado contra a minha ficção", diz Bernardo Carvalho.
Bem, foi quase assim, não exatamente assim, que o escritor disse, em entrevista dada à Folha na terça-feira. Mas aí está a idéia -e nada mais adequado a ela do que uma declaração semi-verdadeira.
Não se pode falar muito sobre seu novo livro, "Nove Noites", que chega às livrarias neste fim-de-semana. Qualquer coisa que se revele sobre o sexto romance do escritor e jornalista, colunista da Folha, pode estragar seu delicado balanço entre ficção e realidade.
Pois bem, aí vai um pouco da realidade. Um antropólogo norte-americano chamado Buell Quain veio ao Brasil em fevereiro de 1938 para fazer pesquisas etnográficas com índios. Em 2 de agosto do ano seguinte o rapaz de 27 anos interrompe uma caminhada que fazia com dois índios pelas matas do Tocantins, faz diversos cortes em seu corpo com gilete e se enforca em uma árvore. É fato.
Fato também é que Bernardo Carvalho topou pela primeira vez com essa história pouco conhecida ao ler um artigo da antropóloga Mariza Corrêa em maio de 2001, que menciona "en passant" "Buell Quain, que se suicidou entre os índios krahôs".
Curioso com o que teria levado o americano, orientando da prestigiada antropóloga Ruth Benedict, a se matar no miolo da floresta brasileira, o escritor logo se viu montando uma detalhada pesquisa. Mas, ao tentar desbastar as arestas do caso, achou uma história real tão repleta de ambiguidades como suas ficções. E se pôs, então, a fazer um romance.
Como nos trabalhos mais recentes de Carvalho, "Teatro" (1998), "As Iniciais" (1999) -que está sendo lançado este mês na França- e "Medo de Sade" (2000), "Nove Noites" também é feito de duas narrativas relacionadas. Mas, se os romances anteriores eram estruturados com um texto no início e outro o contradizendo depois, agora as duas vozes se intercalam.
Em alguns capítulos, em itálico, lemos uma carta deixada por alguém (que não cumpre dizer quem é) para outro alguém (que também não se pode revelar aqui), descrevendo seus momentos com Buell Quain. Nos outros, acompanhamos um escritor e jornalista (criado à imagem e semelhança do próprio Bernardo Carvalho) tentando reconstruir vida e morte do antropólogo.
Ficção baseada em fatos reais? Sim, e não. Uma das molas que propulsiona o romancista é sua irritação com a supervalorização que vê nesse rótulo. "Uma coisa que me incomoda muito na produção literária hoje é a tendência do mercado, do público e do jornalismo de dar maior destaque à ficção "baseada em fatos reais"."
Mas seu romance não é calçado na história verdadeira de Quain?
"Sim, mas faço quase o contrário. Um livro em que todo mundo é real, todos os nomes são verdadeiros, mas é quase tudo falso, é um romance", diz o escritor, que aparece na orelha do livro, em foto de quando tinha seis anos, de mãos dadas com um índio.
Ah, a foto em questão é, sim, real. O escritor, bisneto do lendário marechal Rondon, passou boa parte das férias infantis visitando o Xingu. É quase tudo o que se pode dizer, sem revelar os muitos mistérios da "realidade baseada em fatos ficcionais" de Carvalho.
(CASSIANO ELEK MACHADO)


NOVE NOITES. De: Bernardo Carvalho. Editora: Companhia das Letras. Quanto: R$ 28 (176 págs.).



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