São Paulo, sábado, 28 de setembro de 2002

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CRÍTICA

Missivas mostram ar de confissão de obra

ESPECIAL PARA A FOLHA

"Com raras exceções, a correspondência de Kafka, tal como a maior parte da sua obra, é um diálogo com ele próprio. E, neste sentido, as mais de 500 cartas que escreveu a Felicia Bauer entre setembro de 1912 e outubro de 1917 bem podem ser consideradas como o mais longo de seus romances, e o único que chegou a concluir", observa Ernst Powel em "O Pesadelo da Razão" (1984), sua biografia definitiva do autor de "A Metamorfose" (1915).
O "amor epistolar" entre Franz Kafka (1883-1924) e Felicia -que foram noivos- é paradigmático do papel que a troca de missivas ocupou na vida do ficcionista tcheco. Para Kafka, escrever cartas era, antes de tudo, escrever; noutras palavras, compreender-se. Ciente disso, a polonesa Anna Bolecka elaborou "Querido Franz" (1999), um romance estruturado não apenas na imaginária correspondência que Kafka teria recebido de amigos e namoradas, mas também naquela que seria assinada por ele.
Baseado nos diários e missivas do escritor e em livros a respeito dele, o romance mistura ficção e biografia numa síntese próxima à que Kafka procurou alcançar entre obra e existência, dispondo-se, assim, a desvendá-las para o destinatário que importa: o leitor.
São 136 cartas que cobrem o período 1911-1947. Na primeira delas, o ator e diretor judeu Loeb -ou seja, Yiztzhak Levi ou Djak Löwy, na transliteração alemã de Kafka-, polonês como Bolecka, é quem se dirige ao escritor. Em 1911, o grupo de Löwy se apresentou em Praga, e Kafka se apaixonou por uma atriz casada, a Sra. Tshissik (na livro, Czizik).
Na última missiva, supostamente redigida 25 anos depois da morte de Franz, o músico Wolf S (Walter Shocken) dirige-se a Max Brod (no romance, Maks). Brod foi o melhor amigo, testamenteiro e primeiro biógrafo de Kafka. Eis o assunto que teria aproximado Wolf de Maks naquele ano de 1947 (Walter e Max tiveram contato em 1948): o filho de Greta (Grete) Bloch. Antes de ser amiga de Wolf, ela o fora de Felicia (Felicja) Bauer. Um caso entre Greta e Franz teria gerado um menino, que morrera antes dos sete anos, sem que Kafka jamais soubesse.
Entre a paixão do ficcionista por uma mulher comprometida e a notícia de um suposto filho recebida por Brod, o romance pontua os momentos mais intensos de confluência entre a biografia e a escrita de Kafka. Estão lá tanto o desespero do autor, provocado por sua inadaptação ao mundo, quanto o nascimento da literatura que o expressava.
O que Bolecka parece querer frisar é o caráter de confissão quase religiosa da literatura daquele judeu pouco à vontade com o lugar da fé em seu mundo interior.
A ausência de limites claros entre o factual e o ficcional, longe de prejudicar o livro de Bolecka, pode guardar seu principal mérito: mobilizar o destinatário a procurar conhecer em detalhe tanto a história quanto as histórias de Kafka. (RINALDO GAMA)


Querido Franz    
Autora: Anna Bolecka
Editora: Record
Quanto: R$ 40 (400 págs.)




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