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CRÍTICA
Missivas mostram ar de confissão de obra
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Com raras exceções, a correspondência de Kafka, tal como a maior parte da sua
obra, é um diálogo com ele próprio. E, neste sentido, as mais de
500 cartas que escreveu a Felicia
Bauer entre setembro de 1912 e
outubro de 1917 bem podem ser
consideradas como o mais longo
de seus romances, e o único que
chegou a concluir", observa Ernst
Powel em "O Pesadelo da Razão"
(1984), sua biografia definitiva do
autor de "A Metamorfose" (1915).
O "amor epistolar" entre Franz
Kafka (1883-1924) e Felicia -que
foram noivos- é paradigmático
do papel que a troca de missivas
ocupou na vida do ficcionista
tcheco. Para Kafka, escrever cartas era, antes de tudo, escrever;
noutras palavras, compreender-se. Ciente disso, a polonesa Anna
Bolecka elaborou "Querido
Franz" (1999), um romance estruturado não apenas na imaginária
correspondência que Kafka teria
recebido de amigos e namoradas,
mas também naquela que seria
assinada por ele.
Baseado nos diários e missivas
do escritor e em livros a respeito
dele, o romance mistura ficção e
biografia numa síntese próxima à
que Kafka procurou alcançar entre obra e existência, dispondo-se,
assim, a desvendá-las para o destinatário que importa: o leitor.
São 136 cartas que cobrem o período 1911-1947. Na primeira delas, o ator e diretor judeu Loeb
-ou seja, Yiztzhak Levi ou Djak
Löwy, na transliteração alemã de
Kafka-, polonês como Bolecka,
é quem se dirige ao escritor. Em
1911, o grupo de Löwy se apresentou em Praga, e Kafka se apaixonou por uma atriz casada, a Sra.
Tshissik (na livro, Czizik).
Na última missiva, supostamente redigida 25 anos depois da
morte de Franz, o músico Wolf S
(Walter Shocken) dirige-se a Max
Brod (no romance, Maks). Brod
foi o melhor amigo, testamenteiro
e primeiro biógrafo de Kafka. Eis
o assunto que teria aproximado
Wolf de Maks naquele ano de
1947 (Walter e Max tiveram contato em 1948): o filho de Greta
(Grete) Bloch. Antes de ser amiga
de Wolf, ela o fora de Felicia (Felicja) Bauer. Um caso entre Greta
e Franz teria gerado um menino,
que morrera antes dos sete anos,
sem que Kafka jamais soubesse.
Entre a paixão do ficcionista por
uma mulher comprometida e a
notícia de um suposto filho recebida por Brod, o romance pontua
os momentos mais intensos de
confluência entre a biografia e a
escrita de Kafka. Estão lá tanto o
desespero do autor, provocado
por sua inadaptação ao mundo,
quanto o nascimento da literatura
que o expressava.
O que Bolecka parece querer frisar é o caráter de confissão quase
religiosa da literatura daquele judeu pouco à vontade com o lugar
da fé em seu mundo interior.
A ausência de limites claros entre o factual e o ficcional, longe de
prejudicar o livro de Bolecka, pode guardar seu principal mérito:
mobilizar o destinatário a procurar conhecer em detalhe tanto a
história quanto as histórias de
Kafka.
(RINALDO GAMA)
Querido Franz
Autora: Anna Bolecka
Editora: Record
Quanto: R$ 40 (400 págs.)
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