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LIVRO/LANÇAMENTO
"NIÉTOTCHKA NIEZVÂNOVA"
Obra que retrata paixão de menina por padrasto não obteve repercussão quando lançada
Dostoiévski rejeitado ganha nova tradução
IRINEU FRANCO PERPETUO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Era uma vez uma menina de oito anos de idade, tão apaixonada
pelo padrasto a ponto de desejar a
morte da própria mãe. O casal
morre, ela fica órfã e vai morar na
casa de uma família abastada, onde acaba por desenvolver uma
forte ligação homoerótica com a
filha de seus benfeitores.
O nome da menina é Niétotchka Niezvânova (que poderia ser
traduzido por Anita sem Nome),
protagonista do romance homônimo inacabado do russo Fiódor
Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881), que acaba de ser lançado
pela editora 34, em nova tradução
de Boris Schnaiderman, 85, nome
de referência na tradução de autores russos para o português como
Maiakóvski e Tchekhov.
A redação do romance foi interrompida várias vezes em razão de
encomendas recebidas por seu
autor, até que, em 1849, Dostoiévski é preso e condenado à
morte, acusado de fazer parte de
um complô para assassinar o czar
Nicolau 1º -sentença comutada
para quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria.
"Quando ele saiu da prisão, deu
um remate em "Niétotchka Niezvânova". Melhorou um pouco a
redação, mas publicou como estava", conta Schnaiderman. A obra
foi editada em revista, e seu último capítulo, por determinação da
censura, saiu sem assinatura. O
tradutor crê que o autor de "Crime e Castigo" não se preocupou
em elaborar um final para a obra
que acaba bruscamente, aos 16
anos de idade da protagonista,
porque estava mais interessado
em outros projetos literários.
Na época de Dostoiévski, e mesmo posteriormente, "Niétotchka
Niezvânova" não teve grande repercussão, quer na Rússia, quer
fora dela. Para Schnaiderman, tal
negligência é injusta, pela "extraordinária visão de Dostoiévski
de, intuitivamente, chegar a conclusões a que Freud chegaria mais
tarde, por meio de uma reflexão
teórica".
"O extraordinário dele é que encara o que chamamos de neurose
como algo natural na espécie humana. A neurose para ele não é o
que nós chamamos de neurose.
Nisso ele prenuncia Freud."
Outro fator saboroso que aflora
no livro é a ligação do escritor
com a música, por meio da riquíssima caracterização de Iefimov,
frustrado músico de orquestra
que é o padrasto da protagonista.
A primeira tradução de "Niétotchka Niezvânova" por Boris
Schnaiderman foi publicada em
1961, pela editora José Olympio. O
professor resolveu modificá-la
para esta nova edição "porque eu
traduzia de modo muito solene.
Tinha uma grande preocupação
com a correção gramatical".
Hoje, ele crê que o autor de "Os
Irmãos Karamazov" não pode ser
traduzido com uma preocupação
gramatical exagerada, já que o autor nem sempre respeitava os cânones gramaticais e estilísticos de
sua época. "Por exemplo, Dostoiévski não se incomoda muito
em repetir uma palavra muitas
vezes", explica. "Agora, eu vou
corrigir Dostoiévski ? Não devo.
Eu tenho que me preocupar em
manter o tom do original. E, nisso, a minha edição de 1961 realmente está superada, porque ficou solene demais."
No mesmo espírito, Schnaiderman está elaborando, com calma
e vagar, uma nova tradução de
outra obra de Dostoiévski, "O
Eterno Marido". "Houve críticos
russos que escreveram que Dostoiévski "redigia mal". Não é verdade", diz. "É a mesma coisa que
os franceses dizendo que Balzac
escrevia mal. Se ele criava aquela
obra extraordinária, como é que
escrevia mal? Não é possível. Não
escrevia mal, escrevia à maneira
dele."
NIÉTOTCHKA NIEZVÂNOVA. Autor:
Fiódor Dostoiévski. Tradução: Boris
Schnaiderman. Lançamento: editora 34.
Preço: R$ 25 (224 págs.)
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