São Paulo, sábado, 28 de setembro de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

"NIÉTOTCHKA NIEZVÂNOVA"

Obra que retrata paixão de menina por padrasto não obteve repercussão quando lançada

Dostoiévski rejeitado ganha nova tradução

IRINEU FRANCO PERPETUO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Era uma vez uma menina de oito anos de idade, tão apaixonada pelo padrasto a ponto de desejar a morte da própria mãe. O casal morre, ela fica órfã e vai morar na casa de uma família abastada, onde acaba por desenvolver uma forte ligação homoerótica com a filha de seus benfeitores.
O nome da menina é Niétotchka Niezvânova (que poderia ser traduzido por Anita sem Nome), protagonista do romance homônimo inacabado do russo Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881), que acaba de ser lançado pela editora 34, em nova tradução de Boris Schnaiderman, 85, nome de referência na tradução de autores russos para o português como Maiakóvski e Tchekhov.
A redação do romance foi interrompida várias vezes em razão de encomendas recebidas por seu autor, até que, em 1849, Dostoiévski é preso e condenado à morte, acusado de fazer parte de um complô para assassinar o czar Nicolau 1º -sentença comutada para quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria.
"Quando ele saiu da prisão, deu um remate em "Niétotchka Niezvânova". Melhorou um pouco a redação, mas publicou como estava", conta Schnaiderman. A obra foi editada em revista, e seu último capítulo, por determinação da censura, saiu sem assinatura. O tradutor crê que o autor de "Crime e Castigo" não se preocupou em elaborar um final para a obra que acaba bruscamente, aos 16 anos de idade da protagonista, porque estava mais interessado em outros projetos literários.
Na época de Dostoiévski, e mesmo posteriormente, "Niétotchka Niezvânova" não teve grande repercussão, quer na Rússia, quer fora dela. Para Schnaiderman, tal negligência é injusta, pela "extraordinária visão de Dostoiévski de, intuitivamente, chegar a conclusões a que Freud chegaria mais tarde, por meio de uma reflexão teórica".
"O extraordinário dele é que encara o que chamamos de neurose como algo natural na espécie humana. A neurose para ele não é o que nós chamamos de neurose. Nisso ele prenuncia Freud."
Outro fator saboroso que aflora no livro é a ligação do escritor com a música, por meio da riquíssima caracterização de Iefimov, frustrado músico de orquestra que é o padrasto da protagonista.
A primeira tradução de "Niétotchka Niezvânova" por Boris Schnaiderman foi publicada em 1961, pela editora José Olympio. O professor resolveu modificá-la para esta nova edição "porque eu traduzia de modo muito solene. Tinha uma grande preocupação com a correção gramatical".
Hoje, ele crê que o autor de "Os Irmãos Karamazov" não pode ser traduzido com uma preocupação gramatical exagerada, já que o autor nem sempre respeitava os cânones gramaticais e estilísticos de sua época. "Por exemplo, Dostoiévski não se incomoda muito em repetir uma palavra muitas vezes", explica. "Agora, eu vou corrigir Dostoiévski ? Não devo. Eu tenho que me preocupar em manter o tom do original. E, nisso, a minha edição de 1961 realmente está superada, porque ficou solene demais."
No mesmo espírito, Schnaiderman está elaborando, com calma e vagar, uma nova tradução de outra obra de Dostoiévski, "O Eterno Marido". "Houve críticos russos que escreveram que Dostoiévski "redigia mal". Não é verdade", diz. "É a mesma coisa que os franceses dizendo que Balzac escrevia mal. Se ele criava aquela obra extraordinária, como é que escrevia mal? Não é possível. Não escrevia mal, escrevia à maneira dele."


NIÉTOTCHKA NIEZVÂNOVA. Autor: Fiódor Dostoiévski. Tradução: Boris Schnaiderman. Lançamento: editora 34. Preço: R$ 25 (224 págs.)



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