São Paulo, sábado, 28 de setembro de 2002

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WALTER SALLES

A angústia do goleiro na hora do pênalti

Em alguns dias, volto a filmar. E volta a sensação contida no título do filme de Wim Wenders. As dúvidas. A difícil eleição daquilo que deve fazer parte de um filme e daquilo que não deve.
Eu sou da América do Sul, mas isso você não vai saber, cantava Milton Nascimento em "Para Lennon e McCartney". Em 1952, dois jovens argentinos montaram em uma velha motocicleta, partiram de Buenos Aires e atravessaram o continente até chegar à Venezuela. Ernesto Guevara de la Serna tinha 23 anos. Alberto Granado, 29.
A moto, apelidada de "La Poderosa", ficou no meio do caminho. Mas, para que todos pudessem compartir dessa viagem de (re)descobrimento, desse processo de desvendamento de uma geografia humana muitas vezes desconhecida, os dois escreveram seus diários de bordo. Esses diários são a base do filme. Representam uma viagem iniciática tanto no emocional quanto no político e nos convidam a conhecer melhor um continente em transe.
Hoje, como há 50 anos, a América Latina está mergulhada em uma crise que é não só econômica, mas também de identidade. Tudo mudou, mas tudo permanece como era antes. "É preciso que tudo mude para que tudo permaneça igual", dizia um dos personagens do "Gattopardo", o romance de Lampedusa que Visconti levou às telas.
Discute-se se somos ou não um "continente irrelevante" -como parece pensar Bush. Para responder a essa questão, talvez seja necessário saber um pouco mais sobre quem somos e de onde viemos. Esses dois jovens nos suscitam isso: o desejo de conhecer melhor um continente de seu próprio ponto de vista.
Refizemos a rota trilhada por Ernesto e Alberto em 1952. Se essa é uma tarefa complexa hoje, imagine o que foi a epopéia de 50 anos atrás. A Patagônia e a difícil travessia dos Andes; Valparaiso, a terra de Neruda; o deserto de Atacama e a mina de cobre de Chuquicamata, que pertencia a Anaconda Mining Company antes de ser nacionalizada por Frei e estatizada por Allende; Macchu Picchu e a cultura indígena andina; o leprosário de San Pablo, o maior da América Latina, em plena Amazônia -onde os médicos ficavam de um lado do rio e os doentes, os exilados, do outro.
Foi em San Pablo que, na noite de seu aniversário de 24 anos, Ernesto elegeu a margem do rio em que queria ficar. A outra margem. Atravessou o Amazonas a nado até chegar ao lado dos enfermos, para o espanto das freiras que tomavam conta do leprosário. Contada hoje por Alberto Granado, um jovem de 80 anos, a cena dá um nó na garganta.
Antes de começar essa maratona, pensei que soubesse um pouco da América Latina pelos autores que havia lido ou por viagens pontuais. Engano. Atravessar um país após o outro nos põe constantemente de frente com o inesperado, com o que não está nos manuais.
Foram surgindo diversas revelações: o olhar do fotógrafo indigenista Martin Chambi, os tangos e os choros reinventados por um extraordinário guitarrista, Oscar Aleman. As últimas imagens filmadas da tribo Onas na Patagônia, registradas pouco antes do massacre de toda uma nação indígena. Os escritos de Mariategui, um jovem teórico marxista peruano que morreu cedo demais e cuja visão heterodoxa poderia ser comparada à de Gramsci ou à de Togliatti, na Itália.
Embora o filme acompanhe apenas alguns meses da vida desses dois jovens e termine três anos antes que Guevara tenha conhecido Castro, os momentos mais emocionantes que vivemos talvez tenham acontecido em Cuba: a ida com os atores a Santa Clara, cidade que foi libertada por Guevara durante a Revolução Cubana, numa viagem inesquecível com sua filha, Aliucha, e o encontro com Aleida, viúva de Ernesto, uma mulher de uma força e de uma integridade impressionantes.
Um rosto vai nos acompanhar: o de Alberto. Fomos ouvi-lo pela terceira vez logo depois de seu aniversário de 80 anos. Lembra-se de tudo que Ernesto e ele viveram há 50 anos, como se fosse hoje. "Agora tenho mais tempo do que vida", me diz com um sorriso. Sem melancolia.
Como reviver uma viagem como essa hoje? Vamos procurar filmar com uma equipe pequena, a câmera de 16 mm na mão, tentando incorporar o inesperado, as imperfeições. Como um documentário, como se o que estamos registrando estivesse ocorrendo em nossa frente.
Serei obrigado a alterar esta coluna. Enviarei notícias em um carnê de viagem. Não sei o que sairá deste filme. Só sei que é impossível fazer algo assim sem sair mexido do outro lado.
Até já.


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