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WALTER SALLES
A angústia do goleiro na hora do pênalti
Em alguns dias, volto a filmar. E volta a sensação contida no título do filme de Wim
Wenders. As dúvidas. A difícil
eleição daquilo que deve fazer
parte de um filme e daquilo que
não deve.
Eu sou da América do Sul, mas
isso você não vai saber, cantava
Milton Nascimento em "Para
Lennon e McCartney". Em 1952,
dois jovens argentinos montaram
em uma velha motocicleta, partiram de Buenos Aires e atravessaram o continente até chegar à Venezuela. Ernesto Guevara de la
Serna tinha 23 anos. Alberto Granado, 29.
A moto, apelidada de "La Poderosa", ficou no meio do caminho.
Mas, para que todos pudessem
compartir dessa viagem de
(re)descobrimento, desse processo
de desvendamento de uma geografia humana muitas vezes desconhecida, os dois escreveram
seus diários de bordo. Esses diários são a base do filme. Representam uma viagem iniciática tanto
no emocional quanto no político
e nos convidam a conhecer melhor um continente em transe.
Hoje, como há 50 anos, a América Latina está mergulhada em
uma crise que é não só econômica, mas também de identidade.
Tudo mudou, mas tudo permanece como era antes. "É preciso
que tudo mude para que tudo
permaneça igual", dizia um dos
personagens do "Gattopardo", o
romance de Lampedusa que Visconti levou às telas.
Discute-se se somos ou não um
"continente irrelevante" -como
parece pensar Bush. Para responder a essa questão, talvez seja necessário saber um pouco mais sobre quem somos e de onde viemos. Esses dois jovens nos suscitam isso: o desejo de conhecer melhor um continente de seu próprio
ponto de vista.
Refizemos a rota trilhada por
Ernesto e Alberto em 1952. Se essa
é uma tarefa complexa hoje, imagine o que foi a epopéia de 50
anos atrás. A Patagônia e a difícil
travessia dos Andes; Valparaiso,
a terra de Neruda; o deserto de
Atacama e a mina de cobre de
Chuquicamata, que pertencia a
Anaconda Mining Company antes de ser nacionalizada por Frei e
estatizada por Allende; Macchu
Picchu e a cultura indígena andina; o leprosário de San Pablo, o
maior da América Latina, em
plena Amazônia -onde os médicos ficavam de um lado do rio e os
doentes, os exilados, do outro.
Foi em San Pablo que, na noite
de seu aniversário de 24 anos, Ernesto elegeu a margem do rio em
que queria ficar. A outra margem. Atravessou o Amazonas a
nado até chegar ao lado dos enfermos, para o espanto das freiras
que tomavam conta do leprosário. Contada hoje por Alberto
Granado, um jovem de 80 anos, a
cena dá um nó na garganta.
Antes de começar essa maratona, pensei que soubesse um pouco
da América Latina pelos autores
que havia lido ou por viagens
pontuais. Engano. Atravessar um
país após o outro nos põe constantemente de frente com o inesperado, com o que não está nos
manuais.
Foram surgindo diversas revelações: o olhar do fotógrafo indigenista Martin Chambi, os tangos
e os choros reinventados por um
extraordinário guitarrista, Oscar
Aleman. As últimas imagens filmadas da tribo Onas na Patagônia, registradas pouco antes do
massacre de toda uma nação indígena. Os escritos de Mariategui,
um jovem teórico marxista peruano que morreu cedo demais e
cuja visão heterodoxa poderia ser
comparada à de Gramsci ou à de
Togliatti, na Itália.
Embora o filme acompanhe
apenas alguns meses da vida desses dois jovens e termine três anos
antes que Guevara tenha conhecido Castro, os momentos mais
emocionantes que vivemos talvez
tenham acontecido em Cuba: a
ida com os atores a Santa Clara,
cidade que foi libertada por Guevara durante a Revolução Cubana, numa viagem inesquecível
com sua filha, Aliucha, e o encontro com Aleida, viúva de Ernesto,
uma mulher de uma força e de
uma integridade impressionantes.
Um rosto vai nos acompanhar:
o de Alberto. Fomos ouvi-lo pela
terceira vez logo depois de seu
aniversário de 80 anos. Lembra-se de tudo que Ernesto e ele viveram há 50 anos, como se fosse hoje. "Agora tenho mais tempo do
que vida", me diz com um sorriso.
Sem melancolia.
Como reviver uma viagem como essa hoje? Vamos procurar filmar com uma equipe pequena, a
câmera de 16 mm na mão, tentando incorporar o inesperado, as
imperfeições. Como um documentário, como se o que estamos
registrando estivesse ocorrendo
em nossa frente.
Serei obrigado a alterar esta coluna. Enviarei notícias em um
carnê de viagem. Não sei o que
sairá deste filme. Só sei que é impossível fazer algo assim sem sair
mexido do outro lado.
Até já.
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