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COMENTÁRIO
Ator revelou beleza da imperfeição humana
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Paul Newman surgiu para o cinema em meados
dos anos 50, quando
Marlon Brando e James Dean
eram os belos rostos de uma juventude atormentada e insurgente que começava a abalar as
estruturas do "American way
of life".
Formado, como eles, no método realista de interpretação
do Actors Studio de Lee Strasberg, Newman poderia ser apenas mais um dessa estirpe -e
fez de fato papéis marcantes de
jovem rebelde, como o pugilista
Rocky Graziano de "Marcado
pela Sarjeta" (Robert Wise,
1956) ou o prisioneiro Luke de
"Rebeldia Indomável" (Stuart
Rosenberg, 1967).
Mas desde muito cedo o ator
mostrou que seu escopo era
bem mais amplo, incorporando
humor, ironia e malícia a uma
série muito diversificada de
personagens.
Do ex-jogador de futebol alcoólatra de "Gata em Teto de
Zinco Quente" (Richard
Brooks, 1958), que resiste aos
avanços da sedutora mulher
(Liz Taylor) por conta de uma
relação mal contada com um
amigo suicida, ao ambicioso e
amoral jogador de sinuca Eddie
Felson de "Desafio à Corrupção" (Robert Rossen, 1961),
passando pelo cientista que faz
um trabalho de agente duplo na
Alemanha Oriental ("Cortina
Rasgada", de Alfred Hitchcock,
1966), Newman conferiu matizes de charme e leveza aos papéis mais díspares.
Essa qualidade auto-irônica
fez dele o ator ideal para estrelar releituras mais ou menos
paródicas ou farsescas de gêneros clássicos como o faroeste
("Roy Bean", de John Huston, e
"Butch Cassidy", de George
Roy Hill) e o policial "noir"
("Harper", de Jack Smight, e "A
Piscina Mortal", de Stuart Rosenberg).
Comparado com seus companheiros de geração, Newman
parecia dar a suas criaturas características mais humanas,
contraditórias e comezinhas.
Não carregava nas costas os pecados e culpas do mundo.
Não por acaso, encarnou inúmeros alcoólatras, sem soterrá-los sob o peso da tragédia e do
moralismo. Seus personagens
pareciam sempre abertos à
possibilidade de mudança, de
redenção, de reinauguração.
Alguns cineastas perspicazes
perceberam isso e o levaram a
protagonizar, nos anos 80, belas histórias de "volta por cima"
em papéis que se serviam da
sua experiência, do seu desprendimento e dessa espécie de
encanto do imperfeito que
Newman tão bem encarnava.
Foi o caso, sobretudo, de "O
Veredicto" (Sidney Lumet,
1982), em que o ator vive o advogado alcoólatra e decadente
Frank Galvin, praticamente renascido das cinzas ao se engajar
de corpo e alma numa causa, e
em "A Cor do Dinheiro" (Martin Scorsese, 1986), em que o
velho jogador Eddie Felson, de
"Desafio à Corrupção", passa os
segredos da sinuca e da corrupção humana a um jovem discípulo (Tom Cruise).
Como bandoleiro, cientista,
piloto de automóvel, chefe mafioso, advogado, atleta ou detetive, Newman despia seus personagens da solenidade e parecia levá-los a sério somente até
certo ponto. Em vez de exaltar
a grandiosidade e o heroísmo,
suas criaturas consagravam o
que há de belo e divertido nas
limitações humanas.
Personagens nem sempre
(aliás quase nunca) edificantes,
mas invariavelmente plenos de
energia e vitalidade, ainda que
às vezes momentaneamente
soterradas.
Por trás das câmeras, como
cineasta bissexto, mostrou-se
um sensível diretor de atores
-sobretudo de Joanne Woodward, sua mulher desde 1958-
em dramas psicológicos familiares, mas não chegou a deixar
uma marca pessoal.
Talvez nenhum outro ator
tenha conciliado tão bem como
Paul Newman o magnetismo
pessoal -que ia além da evidente beleza, atingindo o que
os americanos chamam de
"star quality"- e a capacidade
de compor seres humanos tão
ricos e palpáveis quanto aqueles com quem cruzamos na rua
diariamente.
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